rastros e memórias: do registro ao treinamento e a criação atoral na pequena companhia de teatro (2/4)


a ideia da interpretação estabeleceu-se até meados do século xx em que o teatro era textocêntrico. a partir da transição do teatro dramático para o pós-dramático (lehmann, 1944- ), em que pese samuel beckett, com endgame (1957), que mesmo contendo uma literatura consistente a ponto de existir por si mesma, deixava uma margem significativa para o subtexto, que se mostrou e se consolidou por um longo período da história: o ator teria direito a sua própria escrita no teatro.
o conceito de teatro aqui não é na perspectiva da edificação, mas sim da cena, que deslocou o foco do texto para o ator e seu corpo e, posteriormente, para as demais dramaturgias. assim, o ator passa a ser responsável, através de seu corpo, da escritura dramatúrgica atoral, conseguindo articular um discurso através não só da oralidade, mas também com a gestualidade e seu corpo.
essa relação entre agentes responsáveis pela cena, a partir das alterações de suas responsabilidades, mudou a forma da preparação de seus atores e da composição de suas personagens. nessa construção, as várias acepções de teatro existentes na contemporaneidade dão o tom das formas associativas de coletivos e de como as relações entre seus membros se filiam, quer por afinidades ou ofício. assim, há diferenças significativas quando se propõe a dirigir um espetáculo ou encená-lo, interpretar ou representar, quando se parte de uma dramaturgia autoral ou atoral, quando há seleção de elenco para uma encenação ou convite a atores ou diretor para uma determinada encenação. essas escolhas acionam questões éticas, estéticas e políticas que repercutem não só no resultado, como também de que maneira a memória de seus participantes será exigida para a construção da cena, pois também essas escolhas estão diretamente relacionadas à ideia de ser-no-mundo, definido por heidegger (1889-1976).
como ator-pesquisador participei das três últimas montagens e, ao longo desses nove anos, percebi que minha aproximação com a visão estética, política e ética da companhia fortalecia minha necessidade de aprimoramento para com os procedimentos e com a minha orientação enquanto ator, de que, conceitualmente, eu era importante para que a cena acontecesse, já que teatro se efetiva com um ator e um espectador (grotowski, 1992). entretanto, que ator é esse que se apresenta a partir de um procedimento que não faz parte de sua gênese e como se estabelece esse contributo para a formalização da cena? nesse encontro, o trabalho do ator sobre si mesmo, buscando referências e influências na memória e no seu corpo, no seu dizer, em sua escritura, se estabelece como meio viável e concreto de construção coletiva da obra teatral. meu corpo, que é de ator, que ao mesmo tempo significa e gera significados, compõe sensorialmente, sinestesicamente a partir de um conhecimento que exige gerar significados, uma espécie de narrador benjaminiano contemporâneo imprescindível no romance, na literatura, na imprensa para existir seu discurso, sua experiência e sua memória.

rastros e memórias: do registro ao treinamento e a criação atoral na pequena companhia de teatro (1/4)


o teatro sempre teve na memória uma de suas maiores aliadas, tanto no aspecto mais perceptível, que é, a cada récita, recuperar as marcas e o texto que foram exercitados na temporada de ensaios, como também sendo mecanismo de construção das personagens que dissimularão a realidade na ficção.
na construção desse processo, o efêmero – força motriz do teatro – insiste em fazer com que cada apresentação seja única, pois com muitas variáveis – espaço de apresentação, temperatura, estado de saúde dos atores, humores, ser uma arte presencial –, não se é possível repetir as mesmas sensações em todas as apresentações, tanto na perspectiva de quem atua quanto na de quem especta.
como os métodos e procedimentos adotados pelos grupos de teatro em suas montagens são variados, variada também é como a memória é acionada ou exigida pelos envolvidos.
na pequena companhia de teatro, utiliza-se de um único procedimento metodológico para treinamento de seus atores e composição de personagens para seus espetáculos. busca, no decorrer de sua existência, compor uma estética que privilegie a dramaturgia do ator. com isso, distancia-se de um teatro de estética naturalista e se aproxima de um teatro que busca no “extracotidiano” (burnier, 2001; barba, 1995; ferracini, 2001) uma alternativa de potencializar o trabalho do ator. nesse aspecto, a memória já se efetiva numa outra abordagem. enquanto que no teatro que se diz naturalista a “memória emotiva” (stanislávski, 2001) auxilia o ator na composição de seus estados e intenções de fala, pelo viés da interpretação, na pequena companhia a “memória individual” (halbwachs, 1999) e a “identidade” (bauman, 2005; silva, 2000) de seus membros é quem dará a substância necessária ao ator para “representar” (burnier, 2001; barba, 1995; ferracini, 2001) e ao encenador para, efetivamente, em sua formas singulares de ver, perceber e sentir o mundo, viabilizar a cena.
essas sensações são possíveis a partir da percepção do “ser-no-mundo” (saramago, 2012), que é, ao mesmo tempo, gerador de significados e significante, pois que a escrita do ator se estabelece mediante as ações do corpo na construção de representações, a partir do que experienciou, se filiou, se pertenceu e deixou-se pertencer. como cada ator tem suas singularidades e sua história individual de vida, e como esse teatro não é um teatro interpretativo, mas sim representativo, cada ator compõe a partir de seus referenciais existentes no corpo e na sua história. nesse tipo de teatro, desconsidera-se o physiquedurôle, pois se representa algo à sua maneira, e de forma extracotidiana.
a memória estabelece-se também, na pequena companhia de teatro, através de registros áudio-visuais. um amontoado de fotos, vídeos, escritos, croquis, material gráfico, depoimentos, anotações, recortes de jornal, projetos elaborados, figurinos, elementos de cena, que tendem ao esquecimento quando não são revisitados, mas contam a história coletiva de um grupo de quatro amigos e que está registrado; memórias que contam uma história não oficial do teatro de grupo de pesquisa em drama no maranhão.

Da epicização do teatro

Há alguns anos venho percebendo uma acentuada epicização do teatro brasileiro atual. Se eu tomasse como exemplo minha recente trajetória como espectador, diria, sem receio, que oitenta por cento do teatro que assisti nos últimos anos constrói sua narrativa substituindo a ação como fundamento de constituição do dizer, consolidando sua dramaturgia através da contação, da narração, da utilização do discurso indireto, da presença do narrador, elementos basilares da escrita épica, mesmo que a intenção esteja distante de qualquer relação com o teatro épico, que tem como referência o dramaturgo Bertold Brecht. Isso porque o que proponho discutir é sobre o ponto de vista de uma epicização ocorrente a partir dos gêneros literários e não teatrais. A tese que levanto não procura fazer juízo de valor, apenas busca problematizar a pronunciada desproporção entre as características épicas/narrativas e as dramáticas na construção teatral contemporânea, sua gênese e possíveis consequências.

Inicialmente valeria apontar algumas características de ambas estruturas, e tentar, a partir da forma, problematizar seu conteúdo. Ao tomar a palavra drama no sentido de ação, podemos dizer, rasteiramente, que uma peça teatral dramática consolida sua escrita cênica através da ação das personagens. É a ação entre as personagens que conta a história, basicamente, através do discurso direto. O bom e velho Aristóteles, no livro III da sua Poética, diz: (…) “seja deixando as personagens imitadas tudo fazer, agindo”. E ainda: (…) “pois ambos [Sófocles e Aristófanes] representam pessoas fazendo, agindo. Essa, segundo alguns, a razão do nome drama, o representá-las em ação”. Por outro lado, a epicização que aqui problematizo, apresenta a figura de algum tipo de narrador contando a história, com personagens formais menos robustas, atores intercalando funções narrativas e dramáticas, e grande parte da dramaturgia construída em discurso indireto.

Feito esta contextualização para a querida leitora e o caro leitor pouco afeito a chatices tecnicistas de quem faz teatro ou literatura, e mais acostumado ao provocativo exercício de ser espectador ou leitor – e você pensava que o blog só tinha leitores artistas –, desenvolvo o problema, e apresento minha tese. Para mim, o problema está no desequilíbrio – mesmo problema percebido na postagem anterior, apesar de tratar de outro tema. Não vejo maiores consequência em qualquer uma das formas estruturantes de uma peça teatral, apenas me preocupa o desequilibro numérico entre as partes, suspeitando que uma desproporção de magnitude proeminente como a que suponho, seja, de alguma maneira, comprometedora da lucidez que o conjunto de produção teatral de uma época deve ter para confrontar sua realidade e ser instrumento de balizamento desta.

Diferentemente da maioria das minhas postagens, que busca a reflexão através da negação de uma escritura conclusiva, apresentando perguntas e especulando com as imaginárias respostas do leitor, hoje apresento minhas suspeitas quando à origem da desproporção entre uma cênica mais dramática e outra mais epicizada.

Com frequência ressalto que o ser humano ocidental é forjado pela sociedade como um narrador. Desde a infância somos provocados a contar histórias, seja na redação de como foi o nosso fim de semana, seja na mesa de jantar, contando como foi o nosso dia. Raramente, para não sentenciar um nunca, na nossa formação escolar, somo provocados a construir personagens e a contar histórias através da ação dessas personagens. As personagens aparecem, contudo, contadas por nós, narradores das nossas redações, contos, histórias, fantasias, conversas. O paciente leitor estará se perguntando onde quero chegar, o impaciente, calculando o momento de abandonar o texto, e eu apresentando, no próximo parágrafo, a segunda informação fundamental para embasar minha teoria.

Outra particularidade recorrente da recente estruturação do teatro brasileiro contemporâneo se dá na mudança na construção do texto teatral. Se tradicionalmente o texto era escrito por um dramaturgo de gabinete, atualmente grande parte da multiforme e polissêmica dramaturgia contemporânea substituiu o dramaturgo por construções coletivas, colaborativas, presenciais, onde a principal fonte de produção do dizer é o ator, um ator criador, pesquisador, um ator robusto de formação e entendimento, mas, na maioria das vezes, sem um conhecimento técnico formal de dramaturgia. No entanto, o ator, como cidadão, recebeu a mesma preparação sócio-escolar que todos nós, e não está imune à epicização que defendi no parágrafo acima.

Naturalmente – e concluindo, prometo! – a influência que o ator recebe na formação social interfere, acidentalmente, nas postulações, improvisações, incursões e escrituras no momento de produzir dramaturgia. Com isso, organicamente, a produção teatral receberia uma influência de cunho mais narrativo/épico que dramático, e passaria a preponderar essa forma em detrimento marcante da outra. Penso que esse seria apenas um dos fatores do sintoma que apresento e que convido a discutir, pois acredito que outros são igualmente responsáveis pelo desequilíbrio aqui problematizado, entretanto, a extensão já obscena desta postagem me impede de aprofundar.

É uma tese. Absurda, botequinesca, mas tese, enfim. Como advertido em toda a postagem, a experiência de qualquer forma teatral jamais será problema, ao contrário, oxigena, desestabiliza, provoca, sustenta o teatro que fazemos. Contudo, se confirmado o saliente desequilibro que aqui apresento como suspeita, creio que uma reflexão profunda e aguda seria pertinente para não sermos conhecidos pela história como a turma que epicizou o teatro, ou aqueles que destruíram o drama – do verbo grego “draomai”, que significa agir, levado por uma causa visando uma consequência, segundo um bom e velho professor de latim, nas minhas eternas e fugazes experiências acadêmicas. Aguardo sua antítese pós-dramática.