Chove canivetes e não chove espectadores

Você, assídua leitora ou caríssimo – e não menos assíduo – leitor, deve estar estranhando a antecipação da postagem dominical para hoje. A explicação é simples: o fato que narro a seguir é o provocador da minha reflexão, e ele acontece no dia em que o criador descansou – ancoro que, sendo Ele, teria eu tirado um ano sabático.

Hoje iniciaremos uma curta temporada do espetáculo Velhos caem do céu como canivetes aqui na sede – Rua do Giz, 295, Praia Grande –, que durará até segunda, sempre às 19h, e com a peculiaridade de ser paga (R$ 20,00), pois das trinta e três apresentações do espetáculo, em São Luís, apenas três foram pagas, em outra curta temporada que fizemos em 2015.
O espetáculo concluiu mês passado uma jornada singular pelo Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, aprovado para circulação pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, com outras 56 companhias do país. A informação não é irrelevante, nem as 76 apresentações, os 5.265 espectadores, as 23 cidades visitadas, os 14 estados, o SESC Amazônia das Artes, a ocupação CCBNB Fortaleza, os dois Myriam Muniz, os quase 5 anos em cartaz. Todavia, por incrível que pareça, isso não tem relevância alguma em relação ao assunto que passo a abordar.

Para nós, a temporada regular do nosso repertório aqui na sede é a ação mais importante e sintomática do ano, pois diz da nossa estratégia de resistência, sobrevivência e guerrilha para superar um estado que não entende a nossa existência como fator de desenvolvimento humano.

Como nós entendemos assim, estamos permanentemente pensando em como reexistir – roubando a expressão que o querido César Ferrário usou no nosso último encontro –,  e apresentar nossos espetáculos na cidade que nos sedia parece uma alternativa óbvia, mas não é bem assim. Claro que o milhão de habitantes da cidade esconde um público potencial que seria mais que suficiente para que essa nossa ação fosse permanente e bem sucedida. Contudo, o primeiro grande nó é que, ao sermos invisíveis para o governo como agentes de desenvolvimento humano, por consequência sócio-político-cultural, também somos invisíveis para a maioria dos cidadãos ludovicenses. Eles não sabem da nossa existência; nem imaginam que existam teatros alternativos no centro de São Luís; nem desconfiam que o Maranhão produza artisticamente algo além de boi, tambor, bloco ou riso; nem sonham que tem grupos de teatro maranhense rodando o Brasil; ou seja, nosso superpoder de invisibilidade gerado pela gestão pública também afeta a nossa relação com o mercado, que no nosso caso, atende primordialmente pelo nome de público pagante.

Esse gargalo tem sido quase intransponível para nós. Como chegar – sem recursos para marketing, propaganda e todo aquele conhecido blá-blá-blá – a esses 5% da população de São Luís que, sabemos, aprecia o teatro que a gente faz, mas que não sabe que fazemos, e que representa algo em torno de cinquenta mil habitantes? Esse público garantiria nossas temporadas regulares pelos próximos 83 anos (!), tendo em vista que o teatro da nossa sede comporta, no máximo, 100 espectadores. Mas, também sabemos que esse é um número hipotético, e que a nossa realidade é fazer um esforço descomunal para garantir os 35 espectadores de hoje à noite. 

A discussão é recorrente, inclusive aqui no blog, e esbarra num fato mais curioso. Na bem sucedida temporada de Pai & Filho, dois meses atrás, foi surpreendente constatar a quantidade de pessoas do meio artístico, ou amigos, ou conhecidos íntimos, ou sensíveis ao teatro de pesquisa, ou docentes e discentes dos cursos técnicos e superiores de teatro e artes afins, que ainda não tinham assistido a um espetáculo que está há mais de oito anos em cartaz, e que acumula 150 apresentações. Ou seja, nossa dificuldade ainda consiste em convencer o entorno sensível, que dirá o recorte populacional potencial que pressupomos existir? Aqui a questão é pessoal: o que faz uma pessoa que gosta, trabalha, pesquisa, leciona ou estuda teatro não ver um espetáculo da sua cidade, na sua cidade, sendo que esse espetáculo foi ofertado de todas as formas possíveis durante quase uma década?

Claro que tudo isso que aporto aqui já me respondi na postagem Se no teatro servissem mocotó o meu mundo estaria completo, mas não podemos, como grupo, padecer sobre uma condição sócio-político-cultural sem tentar fazer alguma coisa que modifique essa realidade. Queremos ofertar um tipo de teatro, sabemos que há espectadores receptivos a esse tipo de experiência, mas não sabemos como localizá-los, ou não temos recursos para tal. Ao nosso alcance está a tática de guerrilha que estamos tentando desenvolver desde a última temporada de Pai & Filho, que envolve intervenções urbanas, panfletagem, estudo e utilização de mídias sociais, lambe-lambe, visitas a instituições, banners em locais estratégicos, convites pessoais, mas tenho a suspeita de que para estas três únicas apresentações do ano, em São Luís, será insuficiente. Prove o contrário ajudando a lotar as casas, comparecendo, compartilhando a informação, recomendando aos filhos, pais, alunos, amigos. Assim, você será o responsável em transformar o superpoder da invisibilidade no da onipresença.

A arte de perturbar

Foram trinta dias na estrada. Dias de desassossegos e calmarias. A estrada é a palmatória que abarba os homens. Os desiguais se alinham, por bem ou por mal. Agenda, horários, refeições, compromissos, lazer, fuso, tudo gira em torno de um bem comum: o sucesso da empreitada. Em circulação, tudo o que de humano possa ser patético, se torna menor: manias, dores, humores, amores, rumores. A estrada dobra o soberbo, brune o rústico, açoita a megera, contradiz o absoluto, adoça a ríspida, ressabia o crédulo. Nenhum ser, por mais desumano, sai imune da contaminação humanitária que uma circulação teatral provoca. Circulas com teatro, humano és.

Domingo passado concluímos o projeto Velhos caem do céu como canivetes, pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. Foram 4 cidades (Alta Floresta/MT, Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e Dourados/MS), 12 apresentações, 1.226 espectadores, 12 debates, 4 oficinas, 86 concludentes, 4 intercâmbios (Teatro Experimental de Alta Floresta, Teatro Faces, Grupo Casa e Coletivo Clandestino), colégios visitados, professores provocados, alunos comprometidos, acessibilidade efetivada, dever cumprido. Uma jornada plena. Plenitude é a palavra que define o estado do que é inteiro, completo, total, integro. É como nos sentimos com o resultado da nossa residência no Mato Grosso e no Mato Grosso de Sul.
Difícil resumir humanidades em uma postagem, quando sabemos que a palavra é apenas um esforço humano de traduzir a existência. O sentir humano é intraduzível. Viver é uma experiência esvaziada de compreensões. Todavia, se a tarefa de um escritor é dar punho ao vivido, faço das minhas sensações, matéria, e do meu teclar, palavras.
Nossa finalidade era conseguir a maior interlocução possível com todos os atores do projeto; assim, grupos, público, alunos, oficinados, produtores e amigos foram abraçados pelo desejo de diálogo que nos moveu, e retribuíram com respostas muito mais potentes que as pretensas provocações lançadas; revigorando o nosso desejo de entender as condições em que se dá o fazer teatral, sobre os diversos aspectos conjunturais de cada uma das realidades vividas. De sintomático, os apagões de gestão pública que permeiam a vida do teatro, seja qual for a região, estado ou município, se a fronteira que os margeia e contém é a de um país chamado Brasil. Latente e lamentável realidade.
Entender o fenômeno teatral sempre foi outro dos nossos desejos. Com se dá a relação entre a plateia e o espetáculo? Por que essa relação se dá com permanentes altibaixos, fazendo desabrochar o paradoxo do artista espectar a plateia? Quem faz ou fez teatro já ouviu, em algum momento da vida, frases como: “a plateia estava difícil”, “que plateia ótima”, “a plateia estava fria”, “o público foi maravilhoso”, “o público reagiu bem”. Como é possível? Como, um mesmo espetáculo, pode ser recebido de maneira tão plural? Como essa relação pode variar tanto de estado para estado, de cidade para cidade? Como se dá uma plateia em estado de tensão e outra em plena euforia se estão defrontadas com o mesmo espetáculo? Pode a relação entre ator e espectador ser tão intrínseca ao ponto de conduzir a cena para lugares tão distintos, mesmo quando se tenta ser absolutamente fiel ao espetáculo? Neste ponto, o projeto não deu cabo de todas as respostas, nem poderia, mas ajudou a reformular algumas perguntas que atravessaram nossos doze anos de história, catapultadas pelas apresentações em cada uma das setenta cidades que já visitamos.
Amparados na falta de discrição que nos é peculiar, perguntamos; e ficamos sabendo de tudo, de todos, e sobre os todos do tudo. Nossa permanente dissecação de realidades, apesar de inconveniente, nos possibilita o mínimo entendimento das circunstâncias, meios e procedimentos com que se operam os códigos da linguagem teatral; mas, principalmente, das amarguras e doçuras da vida em grupo; seus atropelos, acertos, desistências, rupturas, abraçamentos, espantos e confirmações. Diagnosticar o quanto a vida em grupo é complexa, argilosa e difícil nos fortalece e fragiliza ao mesmo tempo; servindo de alavanca para o salto necessário, problemático e libertador que estamos programando. Teatro de grupo é uma somatória de falências individuais que, processadas, reorganizam-se em potência criativa, desconstruindo o “modus operandi” do individualismo contemporâneo.
Foi o que fizemos, e fazemos. Perturbar os outros com espetáculos, perguntas, encontros, treinos, jantares. Não sabemos fazer outra coisa. Perturbar a ordem, o poder, o silêncio, o sono, o juízo. Obrigado aos perturbados consortes que nos aguentaram, do primeiro ao trigésimo dia, e nos ensinaram que os caminhos podem não ser os mesmos, mas convergem para o belo encontro entre a pergunta e a resposta. E obrigado ao Programa Petrobras Distribuidora de Cultura por permitir a distribuição gratuita de um sonho maior: o de um país melhor para todos. Continuaremos, nem que chovam canivetes.

A poética da vadiagem

Estamos em Campo Grande. Fazendo o quê? Que bicho é esse que nos move, nos faz sair de casa, enfrentar o abismo, atravessar o país de norte a sul, de leste a oeste, claudicar nas vias tortuosas da geografia humana sem agarrar nada palpável, nada concreto, somente a memória sensória dos que nos abraçaram, dos que nos assistiram, dos que nos provocaram, dos que nos ensinaram? Que bicho é esse, alcunhado de teatro, que mesmo não nos deixando nada nos enriquece de tudo? Que bicho é esse, bicho?

Retumbo na cama, pós-espetáculo, e continuo remoendo e tentando aprender algo sobre o espetacular; esse momento que não é nada, mas que se arraigou em nós como se conseguisse ser tudo. Bichos de teatro são espécimes em extinção. Arvoram um momento único, mesmo na repetição infinda de sequenciais apresentações, e florescem a cada encontro como novos, contaminando a existência de outros seres, sem perceber que o contaminante teatro os carcome, sorrateiramente, a cada noite bem dormida. É nessa hora que se processa o milagre: dorme o ingênuo ator, o tolo encenador, e o sono é a terra insensata e infértil onde germina o teatro. É lá que se planta o desespero, o espanto, o assombro, e amanhecemos com uma vontade imensa de continuar avançando para lugar nenhum; pois nosso lugar é o todo, a totalidade, o nosso país.

“Batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão”. Somos batatinhas. Já nos espalhamos por sessenta e nove cidades, e Dourados será a septuagésima; mas, ainda não entendemos por que fazemos isso. Servimos a um exército de desvairados que busca o diálogo presencial em um mundo de “reacionamentos” virtuais. Nova cidade e nova esperança de encontrar. Encontrar respostas. Encontrar abraços. Encontrar perguntas. Encontrar soldados. Encontrar pessoas, de carne e osso. O teatro é de carne e osso. E nossos ossos, atrofiados pela eterna vadiagem territorial que o teatro nos impõe, vão tentando se rearmar, récita a récita, para receber como paga final a dança de esqueletos chamada abraço.

Em poética dialética, um ser humano diz para um ser alado, – Ensina-me a voar; e segue argumentando que é para poder respirar. É para isso que vagamos Brasil afora, para poder respirar. É no voo do gigante pássaro de ferro que deixamos a terra que nos marcou e voamos para o sem-fim, respirar o ar do desconhecido, do novo, do desafio. Para continuar tentando descoser essa trama absurda de “não ter poder de escolher nossos governantes”, de “ditadores que pensam igual”, “de parecer uma segregação”; para gritar contra a desigualdade, o extremismo, a multifobia, o racismo; para não ficar “mudo e quieto como querem que permaneçamos”; para tentar descompassar essa folia polifônica de descalabros que o mundo se tornou – se você não entendeu as aspas é porque não estava em nenhuma das setenta e três tempestades de seres alados que aconteceram em todo o país desde 2013.

Deixaremos Campo Grande para trás, mas Campo Grande não nos deixa. Ele estará conosco em cada um dos 40 participantes da oficina, dos 336 espectadores, dos 70 alunos, dos 10 professores, dos queridos amigos do Grupo Casa que reflexionaram permanentemente conosco durante estes sete dias. O Programa Petrobras Distribuidora de Cultura apresenta Velhos caem do céu como canivetes, e nós tentamos representar nossos anseios, nossos medos, nossas faltas, nossas lutas. Malucos que somos, fazemos isso no tête-à-tête, na cara do espectador, para que ele possa esfregar na cara o tamanho da nossa inutilidade. Você teria coragem?