Uma pequena volta por Campo Grande

Na próxima terça-feira a Pequena Companhia de Teatro retorna a Campo Grande, cidade ocupada com nossas atividades artísticas em 2016, através do Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. Fomos convidados para participar do Projeto Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro e Circo e passaremos toda a semana em terras campo-grandenses. Ministraremos a oficina O Quadro de Antagônicos como instrumento de treinamento para o ator, participarei de uma mesa redonda sobre resistência teatral em tempos de crise e encerraremos nossa participação com uma apresentação do espetáculo Velhos caem do céu como canivetes.
Nosso trabalho no decorrer da última década se pautou no compromisso com o fortalecimento do teatro de grupo, na seriedade com que encaramos nossos projetos artísticos, e na honestidade que apresentaram nossos resultados. O curioso do convite é que saímos de Campo Grande com a certeza de que tínhamos feito um trabalho significativo e contribuído, de alguma maneira, para o fortalecimento da cena teatral local. Foi uma sensação coletiva, pois, ao deixar a cidade, os quatro sentiram que se efetivara a troca; e tudo o que o teatro opera, naquele momento, fazia muito sentido para nós. Mas, como toda certeza é uma dúvida em forma de esperança, o chamado da Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul serviu para confirmar o efeito da nossa passagem, e para propiciar um novo momento para a troca de experiências.
Dos encontros improváveis que a arte proporciona, Campo Grande receberá, em menos de um ano, os dois espetáculos do nosso repertório, as duas oficinas basilares da nossa construção cênica, e pílulas das reflexões que o blog da Pequena Companhia de Teatro procura provocar (assim como a oficina que facilitarei em Natal, a mesa redonda citada acima é outra atividade provocada pelo teimoso exercício de ancorar o pensamento aqui), criando o ambiente oportuno para que a comunidade local estabeleça um contato direto com a formatação do nosso grupo, os mecanismos de encenação, nosso posicionamento político, os meios de financiamento, nossas opções estéticas, os métodos para suportar a fome, os caminhos de treinamento para o ator etc. Apesar do permanente e profícuo atravessamento geográfico que os grupos de teatro brasileiros efetivam anualmente, não é comum uma cidade ter contato pleno com todo o fazer teatral de um coletivo, por isso defendemos e aplicamos, quando possível, o conceito de ocupação alargada, já realizado em Sousa/PB, Goiânia/GO, Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e, em julho próximo, Fortaleza/CE, quando ocuparemos o CCBNB durante duas semanas com a maioria das nossas atividades artísticas.
Claro que a atual conjuntura político-brasileira, e o conceito derivado dessa para as políticas público-culturais – que atende pela alcunha de desmonte – compromete, significativamente, nosso projeto artístico, pois, sem um olhar sensível do poder público, qualquer iniciativa passa a ser regida pelo canibalismo do mercado e nessa seara somo meros cordeirinhos. Portanto, inciativas como a da prefeitura de Campo Grande, focada em propiciar a fruição teatral para sua comunidade, também contribui para a resistência do teatro de grupo, ao promover uma mostra teatral, quando a nova ordem sugere que artistas devem pensar em arrumar trabalho – leia o contraponto que fiz aqui a esse chiste de mau gosto.
A atenta leitora, o cuidadoso leitor, já devem ter percebido o quanto a palavra resistência tem se repetido neste nosso muro das revoluções. Essa reiteração ocorre porque – mesmo que você não saiba, e que nenhum meio de comunicação divulgue – o teatro de grupo do país, e a arte de um modo geral, vem sofrendo uma profunda desconstrução estrutural, surda, capciosa, corrosiva, e a principal arma de que dispomos para o enfrentamento é a resistência. Resistindo vamos, teatralizando, de volta a Campo Grande.

A Pequena no SESC Dramaturgias

 

Amanhã parto para Caxias/MA. Fui convidado para participar do SESC Dramaturgias, um dos principais projetos de pensamento e difusão das plurais dramaturgias pesquisadas atualmente. Visitarei ainda neste primeiro semestre as cidades de Vitória/ES e Maceió/AL, com a oficina Do narrativo ao dramático: a transposição de gêneros como instrumento de confecção de dramaturgia, metodologia criada pela Pequena Companhia de Teatro para a produção de dramaturgia quando o conteúdo de dizeres para a encenação teatral encontra-se disponível em um texto que não é do gênero dramático, seja ele de qualquer outro gênero literário ou textual.   

O projeto me é caro, pois, ao expandir o conceito de dramaturgia, vai de encontro ao pensamento do Teatro Polidramático que a Pequena vem desenvolvendo há alguns anos, e que se sustenta na ideia de que todo aquele organismo cênico que for capaz de construir uma narrativa poderá ser instrumento de dramaturgia, seja ela basilar ou estruturalmente auxiliar a uma dramaturgia principal.
O diferencial expressivo deste projeto em relação a outros que a Pequena Companhia participou ou promoveu, é se tratar de uma atividade formativa com carga horária extensa, de 32 horas/aula. Esse alargamento do tempo de troca retumbará significativamente no aprofundamento de todo e qualquer conteúdo que os diferentes artistas convidados do SESC Dramaturgias proponham, possibilitando uma colheita muito mais pujante que a conseguida com atividades de menor carga horária. Ainda, o participante que se propõe ao intercâmbio, tem a oportunidade de acentuar o estudo e intensificar a prática metodológica da vez, confrontando experiências anteriores e expandindo sua vivência.
Outra virtude é que o projeto prevê dois encontros de 16h, com um intervalo de várias semanas entre um e outro. Essa ideia me é singularmente provocativa, pois promove um tempo de maturação do conteúdo e de prática real para o artista que participa da oficina, oferecendo o tempo e a empiria necessária para os contraditos, as ressalvas, as antíteses; colocando o facilitador frente a frente com possíveis falências reveladas no encontro anterior – diferentemente de  atividades de tiro único, quando o participante fica sem a possibilidade de esclarecer dúvidas provocadas pela tentativa de aplicar o conteúdo sem o acompanhamento necessário de que o preconiza. O conceito exige robustez do oficineiro, sendo que é confrontado com qualquer descaminho que suas proposições não tenham previsto, possibilitando a permanente revisão, tão necessária para a plena consolidação de qualquer postulação.
O SESC Dramaturgias foca investigação em escrita dramatúrgica, dramaturgia do ator, da dança, do circo, da iluminação, afora leituras em cena; e o convite que me foi feito concentrará seu conteúdo na escrita dramatúrgica através da transposição de gêneros literários, experiência que alguns leitores deste blog já vivenciaram em diferentes momentos do nosso calendário de atividades formativas. O que diferirá de experiências anteriores – além do tempo que oportunizará um aprofundamento muito mais significativo – é que somo à atividade a provocação/problematização que tenho feito em palestras e convites para conversas e mesas redondas, assentada na postagem recente que fiz aqui, sobre o excesso de narrativização do teatro contemporâneo.
Como primeiro maranhense a participar do projeto como facilitador, em todos esses anos de SESC Dramaturgias, entendo que o diálogo fortalecerá a capilarização de uma série de escritas cênicas que estão sendo desenvolvidas no Maranhão, e que, por periféricas geograficamente, não conseguem transpor as barreiras impostas pelas regiões detentoras da agenda cultural do país – repare você, arguciosa leitora, astuto leitor, que falo apenas de agenda cultural, pois, a cultura brasileira é tão plural e rica que não admite centros. Mais uma vez o SESC assume um papel capital em favor da descentralização do pensamento, da democratização dos múltiplos fazeres, do intercâmbio nacional e do abrandamento dos eixos hegemônicos.
Claro que o que aqui escrevo são meras impressões do porvir, porque amanhã apenas inicio minha jornada de encontros, aprendizados, desafios, provocações, registros, conversas, trocas, revezes, discussões e estudos. A única certeza é que você poderá acompanhar o desenvolvimento da empreitada no mesmo endereço de sempre – um blog que acumula 541 textos, 1.309 comentários e 7 anos de extensa inutilidade.

Dando número aos bois

O ano começa a acabar e 2016 leva consigo a marca dos dez anos de existência da Pequena Companhia de Teatro. Atravessamos uma década fazendo teatro e vivendo dele, em um mesmo grupo, com os mesmos integrantes, desenvolvendo pesquisa, montando espetáculos, circulando, ministrando oficinas, promovendo festivais, participando de debates, palestras, seminários, fóruns, sem fazer concessões de ordem estética, política, investigativa, financeira ou intelectual. Esse posicionamento nos custou sangue, suor e lágrimas, mas posso assegurar que nada pingou sem a devida dose de satisfação por saber que construíamos uma trajetória regular, honesta, progressiva e permanente.

Primeiro com César Boaes enredando Jorge Choairy no labirinto de “O Acompanhamento”; depois com o fraternal enlace de Lio Ribeiro e Cláudio Marconcine, em “Entre Laços”; em 2010, Jorge e Cláudio se unem num rito patriarcal, em Pai & Filho, para logo depois saírem da órbita com Velhos caem do céu como canivetes, em 2013. Quatro espetáculos em dez anos. Em dois interstícios a Pequena colabora com a Cia. A Máscara de Teatro para as montagens de “Medéia” e “Deus Danado”, em Mossoró, além de coproduzir duas edições do “Auto da Liberdade”. Pinçaria, também, as 4 edições da Semana Imperatrizense de Teatro, e a performance poético-teatral “Literatura Viva”, com mais de 200 intervenções, para as duas primeiras edições da Feira do Livro de São Luís, das quais a Pequena Companhia de Teatro foi responsável pela direção artística. Para dez anos, poderíamos dizer que se trata de uma produção econômica, mas construída na medida dos nossos anseios e das nossas condições.

Uma das principais virtudes foi que essas produções não se bastaram em São Luís. Desde a primeira circulação, com “O Acompanhamento” pelo interior do Maranhão, em 2006, até a derradeira, com “Velhos caem do céu como canivetes” pela Amazônia Legal, viajamos 67 cidades de 25 estados do país. Todos os espetáculos da Pequena Companhia de Teatro cumpriram pelo menos um projeto de circulação. Visitamos 26 cidades do Nordeste, 14 do Sul, 4 do Centro-oeste, 14 do Sudeste e 9 do Norte, ultrapassando as 250 apresentações. Participamos dos principais projetos de circulação nacional – Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, Palco Giratório/SESC, Viagem Teatral/SESI e SESC Amazônia das Artes –, além de ocupar(e)mos os Centros Culturais BNB de Sousa e Fortaleza, através da Seleção de Projetos Culturais BNB. Viajamos de carro, de barco, de van, de avião, de ônibus, de trem, de carroça – isso mesmo que você lê.

Os 4 Prêmios FUNARTE de Teatro Myriam Muniz ganhos pela Pequena Companhia de Teatro, em 2009, 2010, 2012 e 2013, foram nosso esqueleto de sustentação, e a tábua de salvação para inúmeros grupos teatrais do Brasil, que agora padecem com a falta de entusiasmo do MINC em sinalizar uma gestão séria. Tanto os atores Cláudio e Jorge, quanto os espetáculos, direções, produções, cenários e figurinos ganharam o Prêmio SATED/MA de Artes Cênicas – 10 ao todo. Participamos de 62 festivais ou mostras de teatro locais, regionais, nacionais, internacionais e intergalácticas.

Além disso estudamos, enrolamos, aprendemos e ensinamos. Ministramos 5 oficinas – de atuação, de iniciação, de dramaturgia, de leituras dramáticas e de cenografia –  para mais de 50 turmas, em 30 cidades de 18 estados deste brasilzão, e publicamos, lançamos e vendemos/distribuímos 1.000 exemplares de um livro, minha dramaturgia reunida. Parte dessas atividades promovidas pelo Programa BNB de Cultura, outro inestimável investimento cultural que a classe artística perdeu e não se apercebeu.

Adquirimos a sede, que foi nosso grito de independência criativa. Aqui montamos e estreamos o espetáculo “Velhos caem do céu como canivetes”, mantivemos nosso repertório em temporada regular, ofertamos diversas oficinas, debates, visitas guiadas e um seminário com Gilberto Freire de Santana, Dyl Pires e André Lisboa. Ainda abrimos as portas para produções externas, e recebemos os espetáculos “Para uma avenca partindo”, “A escrita do Deus”, “As 3 fiandeiras”, a performance “Ocupa Árvore”, a palestra “Ser indígena hoje em contexto urbano”, a roda de conversa com Gero Camilo, a Mostra SESC Guajajara de Artes, a Conexão Teatro, a Semana do Teatro no Maranhão, o Festival Ponto de Vista/UFMA, A Feira do Livro de São Luís, o lançamento da revista Palavra, os intercâmbios com o Coletivo Alfenim, a Cia. A Máscara, os Clowns de Shakespeare, o Patuanú, o Tibanaré, a Cia. Pão Doce, A Outra Cia. de Teatro (na verdade, esta nos deve a visita, nós é que fomos lá), a oficina literária de Marcelino Freire, e tudo aquilo que por aqui passou e você não viu.

Também aqui, neste blog, a história da Pequena Companhia de Teatro foi sendo construída; foram 525 publicações, 1283 comentários de assíduos ausentes leitores, e milhares de visualizações, em mais de 6 anos de ininterrupta reflexão sobre o teatro e seu entorno, o mundo. Você, confidente leitor, atenta leitora, foram testemunhas das dores e dos sabores dessa jornada hercúlea, a de se fazer teatro no Maranhão e fazê-lo reverberar além das suas fronteiras.   

Para mim, sem sombra de dúvida, foram os melhores dez anos da minha vida. Katia, Jorge e Cláudio, obrigado. No agradecimento aos três sintetizo minha gratidão a todos os atores que ajudaram a consolidar a nossa caminhada, apoiando, assistindo, comemorando, participando, criticando, patrocinando, aplaudindo, conversando, ignorando, refletindo, jantando, ensinando, torcendo, brigando, convivendo, saboreando. Obrigado!