Entre Pasárgada e Macondo

De 18 a 29 de julho a Pequena Companhia de Teatro ocupará o Centro Cultural Banco do Nordeste em Fortaleza/CE, com grande parte do seu repertório de atividades: 06 apresentações de Velhos caem do céu como canivetes e seus respectivos debates, 02 oficinas – O Quadro de Antagônicos como instrumento de treinamento para o ator e Do narrativo ao dramático: a transposição de gêneros como instrumento de confecção de dramaturgia –, o lançamento do livro Cinco Tempos em Cinco Textos, que reúne minha produção dramatúrgica entre 2003 e 2009, a exposição dos figurinos da performance Literatura Viva, do saudoso Chico Coimbra, e a palestra Desconstrução estética de Velhos caem do céu como canivetes, que pretende aproximar cenógrafos e iluminadores das tecnologias teatrais desenvolvidas por nós durante a última década.

O projeto Teatralidades: a Pequena Companhia de Teatro ocupa Fortaleza foi contemplado pelo edital de Seleção de Projetos Culturais BNB 2016/2018 e segue o nosso conceito de ocupação, que procura passar o maior tempo possível na cidade com grande parte das nossas atividades, para que a comunidade que nos recebe tenha uma dimensão ampla dos caminhos do nosso fazer. Por duas edições consecutivas (a de 2014/2015 contemplou a ocupação do CCBNB em Sousa/PB) a Pequena consegue sensibilizar os pareceristas com uma proposta que foge à regra do trânsito rápido, e tenta extrair uma intensidade maior da ideia de intercâmbio. As cidades de Campo Grande/MS, Primavera do Leste/MT e Goiânia/GO também foram tocadas com o conceito, através do Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, em 2016, e muitas ramificações férteis surgiram a partir dessa interlocução mais intensa com os municípios visitados.

Quem nos receberá por lá será o Pavilhão da Magnólia, que fará nossa produção local e assessoria de imprensa, já disparando o diálogo com a cidade e suas idiossincrasias, motivo principal do nosso programa de circulação que procura conseguir o desnudamento dos prazeres e agruras do fazer teatral de cada universo. Para isso, separamos quatro dias da jornada sem atividades formais, para podermos acompanhar espetáculos locais, visitar grupos, sedes, projetos teatrais e toda sorte de atividades que nos possibilitem entender a dinâmica e a lógica da produção cênica de Fortaleza – cidade em que morei por dois anos, num tempo em que teatro ainda era um bicho de sete cabeças que eu almejava conseguir domar algum dia.

Exemplo expresso do que já falei aqui, Fortaleza é uma das capitais mais próximas de São Luís, e uma das mais distantes no que se refere ao intercâmbio de pensamento entre a Pequena e grupos de teatro do país. Estivemos por lá diversas vezes, quando da nossa circulação pelo Myriam Muniz, pelo Palco Giratório e no Festival BNB de Artes Cênicas, com Pai & Filho, mas pouco contato tivemos com a classe artística, ação fundamental para a oxigenação do pensamento, o espelhamento de práticas, o abrandamento de mazelas e a encubação de soluções para a subsistência de grupos de teatro neste trágico Brasil que hoje se apresenta. Capitais menos prováveis são aliadas contumazes na tessitura da teia de que falo no link que acabei de oferecer acima, e que você não teve a gentileza de visitar para que a contextualização seja possível.

Por quê? Por que uma capital mais próxima do que muitas outras se manteve tão distante da Pequena Companhia de Teatro? Por que Piracicaba, Campo Grande, Palmas, Belém, Cuiabá, Porto Velho, Guaramiranga, Teresina, Macapá conhecem nossos últimos dois espetáculos e Fortaleza só conhece um? A principal resposta está num problema que perpasso agora, mas que me debruçarei em uma próxima postagem: com o advento da política dos editais –  esboço de fomento cultural que contribuiu para a construção de cidadania, diferentemente do desmonte atual – deixamos de ser propositivos, e passamos a ser pautados por aqueles que determinam os eixos curatoriais dos editais em questão. Se a Pequena queria ir para Pasárgada e Macondo, não necessariamente o programa da vez queria o mesmo, e acabávamos indo apenas para Macondo. Nossa ida para Macondo, por mais sensacional que fosse, não saciava nosso desejo de ir para Pasárgada, contudo, pouco fizemos para chegar até lá, mesmo sabendo que seríamos amigos do rei.

Agora, para que o projeto de ocupação do CCBNB se tornasse viável, propusemos ir de Pequena Móvel – nome dado por Fernando Yamamoto à nossa forma de deslocamento quando vamos os quatro de carro com o reboque carregando o cenário –, dirigindo os mil quilômetros que separam São Luís de Fortaleza; pincelada de esforço que confirma o desejo de que a cidade conheça um pouco mais a fundo nossa produção. Então, o que nos impediu de arribar em Fortaleza em outro momento? A resposta na ponta da língua é o fator econômico, desculpa que nos acomodou em um calendário sugerido por nós, mas definido por outros. Desculpas, pois, a Pequena Móvel depende de uns litros de combustível para ser independente, e tenho absoluta certeza que não faltaria um colchão limpo e um espaço vazio esperando por nós em qualquer destino desejado.

As reflexões que aqui faço são os passos que dou rumo ao entendimento de outras diversas ações de sustentabilidade que precisamos desenvolver para que a nossa realidade continue sendo a de um grupo de teatro nordestino que apresenta um fazer teatral honesto, independente e constante. Uma dessas ações será o tema da postagem que escreverei no final deste mês, após confirmadas as tratativas. Só não digo do que se trata para não ter que usar a palavra “spoiler”.
 

Dando número aos bois

O ano começa a acabar e 2016 leva consigo a marca dos dez anos de existência da Pequena Companhia de Teatro. Atravessamos uma década fazendo teatro e vivendo dele, em um mesmo grupo, com os mesmos integrantes, desenvolvendo pesquisa, montando espetáculos, circulando, ministrando oficinas, promovendo festivais, participando de debates, palestras, seminários, fóruns, sem fazer concessões de ordem estética, política, investigativa, financeira ou intelectual. Esse posicionamento nos custou sangue, suor e lágrimas, mas posso assegurar que nada pingou sem a devida dose de satisfação por saber que construíamos uma trajetória regular, honesta, progressiva e permanente.

Primeiro com César Boaes enredando Jorge Choairy no labirinto de “O Acompanhamento”; depois com o fraternal enlace de Lio Ribeiro e Cláudio Marconcine, em “Entre Laços”; em 2010, Jorge e Cláudio se unem num rito patriarcal, em Pai & Filho, para logo depois saírem da órbita com Velhos caem do céu como canivetes, em 2013. Quatro espetáculos em dez anos. Em dois interstícios a Pequena colabora com a Cia. A Máscara de Teatro para as montagens de “Medéia” e “Deus Danado”, em Mossoró, além de coproduzir duas edições do “Auto da Liberdade”. Pinçaria, também, as 4 edições da Semana Imperatrizense de Teatro, e a performance poético-teatral “Literatura Viva”, com mais de 200 intervenções, para as duas primeiras edições da Feira do Livro de São Luís, das quais a Pequena Companhia de Teatro foi responsável pela direção artística. Para dez anos, poderíamos dizer que se trata de uma produção econômica, mas construída na medida dos nossos anseios e das nossas condições.

Uma das principais virtudes foi que essas produções não se bastaram em São Luís. Desde a primeira circulação, com “O Acompanhamento” pelo interior do Maranhão, em 2006, até a derradeira, com “Velhos caem do céu como canivetes” pela Amazônia Legal, viajamos 67 cidades de 25 estados do país. Todos os espetáculos da Pequena Companhia de Teatro cumpriram pelo menos um projeto de circulação. Visitamos 26 cidades do Nordeste, 14 do Sul, 4 do Centro-oeste, 14 do Sudeste e 9 do Norte, ultrapassando as 250 apresentações. Participamos dos principais projetos de circulação nacional – Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, Palco Giratório/SESC, Viagem Teatral/SESI e SESC Amazônia das Artes –, além de ocupar(e)mos os Centros Culturais BNB de Sousa e Fortaleza, através da Seleção de Projetos Culturais BNB. Viajamos de carro, de barco, de van, de avião, de ônibus, de trem, de carroça – isso mesmo que você lê.

Os 4 Prêmios FUNARTE de Teatro Myriam Muniz ganhos pela Pequena Companhia de Teatro, em 2009, 2010, 2012 e 2013, foram nosso esqueleto de sustentação, e a tábua de salvação para inúmeros grupos teatrais do Brasil, que agora padecem com a falta de entusiasmo do MINC em sinalizar uma gestão séria. Tanto os atores Cláudio e Jorge, quanto os espetáculos, direções, produções, cenários e figurinos ganharam o Prêmio SATED/MA de Artes Cênicas – 10 ao todo. Participamos de 62 festivais ou mostras de teatro locais, regionais, nacionais, internacionais e intergalácticas.

Além disso estudamos, enrolamos, aprendemos e ensinamos. Ministramos 5 oficinas – de atuação, de iniciação, de dramaturgia, de leituras dramáticas e de cenografia –  para mais de 50 turmas, em 30 cidades de 18 estados deste brasilzão, e publicamos, lançamos e vendemos/distribuímos 1.000 exemplares de um livro, minha dramaturgia reunida. Parte dessas atividades promovidas pelo Programa BNB de Cultura, outro inestimável investimento cultural que a classe artística perdeu e não se apercebeu.

Adquirimos a sede, que foi nosso grito de independência criativa. Aqui montamos e estreamos o espetáculo “Velhos caem do céu como canivetes”, mantivemos nosso repertório em temporada regular, ofertamos diversas oficinas, debates, visitas guiadas e um seminário com Gilberto Freire de Santana, Dyl Pires e André Lisboa. Ainda abrimos as portas para produções externas, e recebemos os espetáculos “Para uma avenca partindo”, “A escrita do Deus”, “As 3 fiandeiras”, a performance “Ocupa Árvore”, a palestra “Ser indígena hoje em contexto urbano”, a roda de conversa com Gero Camilo, a Mostra SESC Guajajara de Artes, a Conexão Teatro, a Semana do Teatro no Maranhão, o Festival Ponto de Vista/UFMA, A Feira do Livro de São Luís, o lançamento da revista Palavra, os intercâmbios com o Coletivo Alfenim, a Cia. A Máscara, os Clowns de Shakespeare, o Patuanú, o Tibanaré, a Cia. Pão Doce, A Outra Cia. de Teatro (na verdade, esta nos deve a visita, nós é que fomos lá), a oficina literária de Marcelino Freire, e tudo aquilo que por aqui passou e você não viu.

Também aqui, neste blog, a história da Pequena Companhia de Teatro foi sendo construída; foram 525 publicações, 1283 comentários de assíduos ausentes leitores, e milhares de visualizações, em mais de 6 anos de ininterrupta reflexão sobre o teatro e seu entorno, o mundo. Você, confidente leitor, atenta leitora, foram testemunhas das dores e dos sabores dessa jornada hercúlea, a de se fazer teatro no Maranhão e fazê-lo reverberar além das suas fronteiras.   

Para mim, sem sombra de dúvida, foram os melhores dez anos da minha vida. Katia, Jorge e Cláudio, obrigado. No agradecimento aos três sintetizo minha gratidão a todos os atores que ajudaram a consolidar a nossa caminhada, apoiando, assistindo, comemorando, participando, criticando, patrocinando, aplaudindo, conversando, ignorando, refletindo, jantando, ensinando, torcendo, brigando, convivendo, saboreando. Obrigado!

Teatro para tempos de crise

Semana passada estive em Mossoró palestrando sobre gestão teatral e as estratégias necessárias para encarar tempos de crise, um encontro informal e caloroso com as queridas companhias A Máscara e Pão Doce. O objetivo era tratar a ideia de crise no sentido amplo, abordando crises financeiras, de relacionamento, de gestão, de identidade, etc. Aqui concentrarei minha atenção na dita crise econômica que tanto espaventa.
Nunca me agradou a mistura entre arte e mercado, roda de negócios, comercialização, metas, coaching, produto, lucro, e toda a parafernália mercadológica que é apresentada como obrigatória para o sucesso de uma companhia teatral. Costumo tratar esses mandamentos de maneira distanciada e informal, para não me descobrir, no futuro, um tecnocrata das artes, pançudo e mal pago. Contudo, entendo que vivemos em um mundo onde a indiferença a esses fatores pode ser assustadoramente nociva para o futuro de uma companhia que sobrevive exclusivamente de teatro, como é o caso da Pequena Companhia.
Em tempos difíceis, o que diferencia o teatro de pesquisa de todas as outras atividades do mundo, é que ele sempre esteve e estará em crise econômica. Ele não sabe o que é vida além da permanente dificuldade de sobreviver do seu fazer, portanto, permanece também imune às subidas e descidas de dólar, bolsa, produto interno bruto, taxa de juros etc. O que rege a vida teatral é a subida e descida do pano.
Essa condição deve servir para fortalece uma visão estratégia do grupo de teatro, e tentar perceber a trajetória a longo prazo, arremessar o pensamento ao futuro, imaginar os quadros mais negativos possíveis, e usar a criatividade artística como instrumento gerador de soluções além do óbvio.
Não existe uma regra; penso que cada coletivo deve fazer um diagnóstico preciso da sua situação e, a partir daí, elencar as mais estapafúrdias ideias que dialoguem com seus desejos e dizeres, para formar um banco de possibilidades a serem avaliadas, estudadas, testadas e aplicadas em tempos progressivos e momentos cruciais.
Quando digo estapafúrdias não brinco: de que maneira o espetáculo Velhos caem do céu como canivetes pode ensinar o público chinês a falar português? Em que tipo de leilão pode se leiloar o cenário do espetáculo que já morreu? Como invadir, com um espetáculo, um festival de teatro que não fomos selecionados? Como convencer o mercado a não tratar a arte como mercadoria?
A ideia parte do mesmo princípio que uso para conceber uma nova encenação; pensar além do óbvio, não temer o ridículo, não desistir prematuramente, assustar-se com a própria ideia, evitar o engessamento, sacudir a certeza, respeitar o desalento, resistir. Claro que tudo isso quase nunca dá certo, entretanto, como não cobro pelo conselho, tampouco pago pelo fracasso.