Contrariando a nova ordem

A Pequena Companhia de Teatro iniciou recentemente uma nova parceria, desta vez com a Cia. Prisma de Artes, de Fortaleza/CE, com o intuito de montar um espetáculo que reúna as urgências do coletivo cearense, com estreia prevista para o primeiro semestre de 2019.

Passamos uma semana em Fortaleza – momento capital para o atravessamento do pensamento e das práticas de cada grupo – atentos às demandas oriundas das aflições que compõem o quadro das nossas lutas, e afinados na percepção de estudar o melhor caminho para dar eco a elas.

Sinto que tudo está cada vez mais urgente. Teatro é ação. É movimento. Quanto mais um coletivo se move, se desloca, se transmuta, se reinventa, maior a pujança surgida. Quanto mais um grupo encena, maior a probabilidade de responder às urgências provenientes da contemporaneidade.

Nesse caminho, depois das preliminares discussões sobre o que dizer, motivado por alguns textos e gatilhos provocadores, mergulhamos num intenso exercício de experimentação, tentando fazer aflorar de maneira mais orgânica o compromisso do discurso com esse agora de que trato no parágrafo acima.

Atores em processo de experimentação se revelam, se entregam ao descompromisso com a lógica, se metamorfoseiam sem temer o ridículo, fazendo com que a verdade seja uma órbita pulsante em cada experimento. Como nosso caminho ainda não estava comprometido nem com forma ou conteúdo, o torvelinho de opões foi sendo desvelado, assegurando um repertório de alternativas interessantes, embaladas na atmosfera do contemporâneo, pela fragmentação do discurso, pelo descolamento com uma narrativa dramática, e pela amarga sensação de estarmos vivendo uma distopia.

Agora nos dedicamos ao encaminhamento mais organizado do dizer, estabelecendo metas e prazos para definirmos concentradamente as possibilidades levantadas, porque uma coisa é consensual entre a Prisma e a Pequena: a força do discurso é crucial para a saúde da encenação, tendo em vista que o comprometimento dos envolvidos depende exclusivamente da identificação destes com o objeto de pesquisa. É o momento em que não se pode titubear, pois toda a sequência do trabalho pode ficar comprometida se não houver clareza e confiança no dito, para que a defesa desse postulado se materialize na potência aplicada pelo grupo na construção da cena.

Somar ações, encontros, estratégias, parcerias, pensamentos e práticas é a forma que o teatro de grupo do país tem para enfrentar a nova ordem que se avizinha, certos da tragédia que assolará a cultura brasileira: quem fala em fundo do poço não sabe o que é profundidade.

Partes de mim

Semana passada estive em Mossoró, para a serenata surpresa e íntima, promovida pela “A Máscara”, e dirigida por Damásio Costa, para uma das minhas amigas mais queridas, a atriz Tony Silva. Aproveitando a ocasião, pudemos espremer o tempo e avançar nas discussões e procedimentos da próxima montagem do grupo, prevista para 2019, com direção minha, como você já sabe, pois leu aqui.

Nossa discussão, que se encaminhava para a adaptação do romance “A Polaquinha”, de Dalton Trevisan, sofreu um pequeno revés, e nos percebemos discutindo pertinência, contemporaneidade, desejos, oportunidades; definindo que será uma das nossas três montagens juntos, mas não necessariamente a primeira.

Esse titubeio oxigenou meu discernimento e alimentou o assunto da escrita semanal que me imponho aqui, e que tem sido motivo de análise severa quanto a efetiva necessidade da permanência do exercício, tendo a falta de frequência como aliada na argumentação para a suspensão do martírio de me revelar semanalmente. Inflamável, o conflito explodiu nas entranhas e sangrou, expondo as vísceras do teatro de grupo na contemporaneidade: o que dizer?

Minha tentativa hoje é discorrer sobre todas as influências que afetam uma opção orgânica de temática definida por um grupo e as consequências que essa ponderação possam infligir na obra de arte em questão.

Como sempre me apresento como vidraça, digo: a Mulher, personagem emblemática da nossa próxima montagem, foi vestida durante um período pela atriz Jyesse Ferreira, em um desempenho preciso que oferecia a representação exata que a personagem demandava. Somava-se a essa sorte, a imagem estética do corpo total da atriz, que traduzia a Mulher com acerto. Em um determinando momento do processo, quando nos deliciávamos em descompromisso criativo experimentando aleatoriamente propostas dos atores para o figurinos das personagens, me deparo com a concretude da Mulher: Jyesse, com sua particular beleza, descalça, com uma saia volumosa e patética, e nua no que se refere a todas as partes do corpo que o pano não cobria. A Mulher perfeita. Não como símbolo de perfeição, percebam que escrevi com maiúscula, pois a personagem se chama Mulher, logo, a personagem perfeita. Tergiverso para atiçar a sua curiosidade.

Você deve estar se perguntando, o que essa glosa significa? Qual a relação com o dizer desta postagem? Revelo: após o registro da imagem epifânica pelas minhas retinas, me deparei questionando a opção. Em trinta anos de teatro, nunca havia vivido a sensação de confrontar uma demanda orgânica da cena com o entorno com a qual ela vai dialogar. Falamos de censura, de conveniência, de cuidados, de enquadramento, de todas uma hermenêutica que jamais deveria habitar o diálogo de uma obra de arte em construção.

Eis a questão. O quanto o mercado, as curadorias, o espectador, o viés político   tem influenciado as opções do teatro de grupo na contemporaneidade? Quanto a conveniência influencia a cena? Tenho me deparado com uma frequência fenomenal com comentários referentes às motivações que determinaram o destino de encenações das mais diversas: ter uma pegada mais contemporânea; uma estética mais enxuta para facilitar a circulação; o problema da internacionalização é o idioma; preferimos não arriscar para não limitar; o espectador quer se divertir; melhor evitar polêmica; melhor provocar polêmica…

O que deve ser incorruptível em um dizer artístico? Até que ponto a concessão é uma arma ou uma farsa? Não caberia à arte a crueza da verdade necessária, independentemente do diálogo com o seu entorno? Não caberiam às vanguardas o não enquadramento? Fazemos teatro ou promovemos unanimidades? Provocamos ou pasteurizamos?

Mesmo depois de trinta anos tropegando nos trilhos tortos do teatro de grupo e seus azares, a experiência não me brinda com a serenidade típica e cadenciada da idade. Hoje, estou pouco confortável com a nova ordem que se desenha. Não me sinto em condições de arbitrar valor ao caminho mais acertado para decompor tudo o que está posto e provocar uma nova desordem. Insistir na ruptura? Investir no decote? Como se estrutura a cena cíclica do mundo? Como progride um universo; do caos ou da harmonia? Queremos aceitação ou queremos transgredir? Qual é o meu lugar na cena? Qual é o lugar do teatro de grupo?

Outro dia escrevi que decidi ser jovem depois de velho, e cheguei atrasado. Blefe? Continuo um velho empedernido? Você me vê transigindo com o que não me representa pelo valor atribuído aos vinténs da contemporaneidade? Você me enxerga enquadrando uma obra para ampliar a repercussão do seu dizer? Você me entende como sujeito de uma construção pré-moldada? Você reconhece o dilema ou acredita no meu jogo de cena? Não, não são perguntas retóricas. Me responda: como você me vê?

O poder do atravessamento

Passei o mês de julho em Mossoró, cumprindo uma agenda cavalar, que na maioria das vezes ocupava até quatro períodos (manhã, tarde, noite e início da madrugada), motivo pelo qual a desatenta leitora e o leitor distraído ficaram sem minhas elucubrações dominicais – para seu alívio.

A pauta principal dizia da remontagem de “Deus Danado”, tema que ocupou a minha última postagem, três semanas atrás. As outras atividades foram se formando motivadas por um desejo improvável – visto que nem de gente eu gosto –, e que perpassa toda a minha recente trajetória: a interlocução, o atravessamento, o diálogo, a comunhão. Onde existir um convite para uma conversa, lá estarei tentando aproximar realidades, convergir díspares, juntar amigos, aglomerar experiências.

Em Mossoró, a Cia. A Máscara de Teatro/RN, a Cia. Pão Doce/RN, o Balaio Coletivo/MA, a Pequena Companhia de Teatro/MA, o Pavilhão da Magnólia/CE, a Cia. Prisma de Arte/CE, a Cia. Bagana de Teatro/RN, viveram um intercâmbio espontâneo, intenso, fértil e generoso construído apenas pela vontade de querer conversar. Formalmente, a iniciativa do Balaio em se aventurar em uma vivencia de sete dias com a Pão Doce – e por tabela com a Máscara e a Pequena –, foi basilar para o desdobramento espontâneo de todos os outros encontros.

Há anos que defendo o poder do atravessamento, e sempre ressalvo o quanto essa interlocução foi fundamental para que a Pequena Companhia de Teatro chegasse onde chegou: a lugar nenhum. Minha defesa insiste em frisar o quanto o intercâmbio encurta os caminhos, atalha soluções para os problemas, gera potência criativa, favorece a sustentabilidade. Um exemplo que dou sempre: para que passar dias tentando resolver um problema de gestão do nosso grupo, inventando soluções, quebrando a cabeça, se bastariam duas ou três ligações para coletivos amigos, e perguntar como resolveram essas questões. Todos já passaram pelas mesmas coisas, e nossos pares têm as mais diversas soluções para os mais improváveis problemas. Esse é o poder do atravessamento.

Minha obsessão pelo desvelamento provocado pela conversa fez com que eu desenvolvesse uma ideia que a Pequena Companhia de Teatro passará a chamar de Cozinha Teatral. Não vou dar detalhes disso agora, mas o que esse projeto busca é gerar maior intimidade na relação dialógica. Em Mossoró conseguimos isso, em alguns momentos. Quanto de verdade contamos nos nossos encontros com grupos amigos? Quanto escondemos das nossas falências? O que gostaria de perguntar para os meus pares e a vergonha não deixa? Como falar das amarguras mais íntimas?

Tenho sido um provocador de constrangimentos, mas percebo que tem funcionado. Em Mossoró experimentamos isso. Revelar a falha, contar as agruras, saborear a inveja, desmascarar a empáfia, confidenciar as dores – em um dos encontros vivi um dos momentos mais tocantes da minha vida no relato de uma querida amiga, ao tratar das angústias provocadas pelo desejo de viver de teatro. Temas espinhosos mesmo! Dinheiro, relacionamento, abandono, traição; temas tão cabeludos que chegam a ruborizar o sujeito mais frio, insensível e tosco do planeta: eu.

Tudo em prol do teatro de grupo. Do diálogo entre grupos de teatro. Da consolidação de um atravessamento eficaz entre coletivos. Tudo em prol do fortalecimento de uma teia de afetos que defendo em uma das postagens mais populares e mais lidas deste blog: Entretecendo a teia da revolução – oito anos lendo o blog e você ainda não sabe que se o título está em vermelho é porque o link da postagem está escondido atrás das palavrinhas esperando você clicar? 

Em tempos de crise como o que estamos vivendo, a experiência dos nossos pares é um dos principais patrimônios de que dispomos para achar soluções, comparar realidades, executar planos, desenvolver visão estratégica; mas essa experiência precisa ser apresentada sem simulacros, honestamente, generosamente, para que a vivência seja instrumento de potência e não de falsa glória. A interlocução não pode se tornar a locução das nossas vaidades. Sejamos verdadeiros, para que a verdade construa pontes de comunicação, laços de realidades, convergência de eficácia. Quanto mais eficazes forem os grupos de teatro do país maior será a resistência da teia formada por eles.

Minha reflexão hoje é universal, motivo pelo qual evito personalizar, particularizar. Os nomes, os afetos, os cuidados não caberiam em uma única postagem, por isso minha opção em falar de grupos, de coletivos, daquilo que sustenta o fazer teatral do país. É o conhecimento e reconhecimento de nós mesmos, o entendimento das nossas diferenças e referências, o intercâmbio de expertises, e a generosidade entre partes do mesmo todo que acentuam a força do teatro de grupo como sinônimo de resistência socio-político-cultural. Dialoguemos.