O poder do atravessamento

Passei o mês de julho em Mossoró, cumprindo uma agenda cavalar, que na maioria das vezes ocupava até quatro períodos (manhã, tarde, noite e início da madrugada), motivo pelo qual a desatenta leitora e o leitor distraído ficaram sem minhas elucubrações dominicais – para seu alívio.

A pauta principal dizia da remontagem de “Deus Danado”, tema que ocupou a minha última postagem, três semanas atrás. As outras atividades foram se formando motivadas por um desejo improvável – visto que nem de gente eu gosto –, e que perpassa toda a minha recente trajetória: a interlocução, o atravessamento, o diálogo, a comunhão. Onde existir um convite para uma conversa, lá estarei tentando aproximar realidades, convergir díspares, juntar amigos, aglomerar experiências.

Em Mossoró, a Cia. A Máscara de Teatro/RN, a Cia. Pão Doce/RN, o Balaio Coletivo/MA, a Pequena Companhia de Teatro/MA, o Pavilhão da Magnólia/CE, a Cia. Prisma de Arte/CE, a Cia. Bagana de Teatro/RN, viveram um intercâmbio espontâneo, intenso, fértil e generoso construído apenas pela vontade de querer conversar. Formalmente, a iniciativa do Balaio em se aventurar em uma vivencia de sete dias com a Pão Doce – e por tabela com a Máscara e a Pequena –, foi basilar para o desdobramento espontâneo de todos os outros encontros.

Há anos que defendo o poder do atravessamento, e sempre ressalvo o quanto essa interlocução foi fundamental para que a Pequena Companhia de Teatro chegasse onde chegou: a lugar nenhum. Minha defesa insiste em frisar o quanto o intercâmbio encurta os caminhos, atalha soluções para os problemas, gera potência criativa, favorece a sustentabilidade. Um exemplo que dou sempre: para que passar dias tentando resolver um problema de gestão do nosso grupo, inventando soluções, quebrando a cabeça, se bastariam duas ou três ligações para coletivos amigos, e perguntar como resolveram essas questões. Todos já passaram pelas mesmas coisas, e nossos pares têm as mais diversas soluções para os mais improváveis problemas. Esse é o poder do atravessamento.

Minha obsessão pelo desvelamento provocado pela conversa fez com que eu desenvolvesse uma ideia que a Pequena Companhia de Teatro passará a chamar de Cozinha Teatral. Não vou dar detalhes disso agora, mas o que esse projeto busca é gerar maior intimidade na relação dialógica. Em Mossoró conseguimos isso, em alguns momentos. Quanto de verdade contamos nos nossos encontros com grupos amigos? Quanto escondemos das nossas falências? O que gostaria de perguntar para os meus pares e a vergonha não deixa? Como falar das amarguras mais íntimas?

Tenho sido um provocador de constrangimentos, mas percebo que tem funcionado. Em Mossoró experimentamos isso. Revelar a falha, contar as agruras, saborear a inveja, desmascarar a empáfia, confidenciar as dores – em um dos encontros vivi um dos momentos mais tocantes da minha vida no relato de uma querida amiga, ao tratar das angústias provocadas pelo desejo de viver de teatro. Temas espinhosos mesmo! Dinheiro, relacionamento, abandono, traição; temas tão cabeludos que chegam a ruborizar o sujeito mais frio, insensível e tosco do planeta: eu.

Tudo em prol do teatro de grupo. Do diálogo entre grupos de teatro. Da consolidação de um atravessamento eficaz entre coletivos. Tudo em prol do fortalecimento de uma teia de afetos que defendo em uma das postagens mais populares e mais lidas deste blog: Entretecendo a teia da revolução – oito anos lendo o blog e você ainda não sabe que se o título está em vermelho é porque o link da postagem está escondido atrás das palavrinhas esperando você clicar? 

Em tempos de crise como o que estamos vivendo, a experiência dos nossos pares é um dos principais patrimônios de que dispomos para achar soluções, comparar realidades, executar planos, desenvolver visão estratégica; mas essa experiência precisa ser apresentada sem simulacros, honestamente, generosamente, para que a vivência seja instrumento de potência e não de falsa glória. A interlocução não pode se tornar a locução das nossas vaidades. Sejamos verdadeiros, para que a verdade construa pontes de comunicação, laços de realidades, convergência de eficácia. Quanto mais eficazes forem os grupos de teatro do país maior será a resistência da teia formada por eles.

Minha reflexão hoje é universal, motivo pelo qual evito personalizar, particularizar. Os nomes, os afetos, os cuidados não caberiam em uma única postagem, por isso minha opção em falar de grupos, de coletivos, daquilo que sustenta o fazer teatral do país. É o conhecimento e reconhecimento de nós mesmos, o entendimento das nossas diferenças e referências, o intercâmbio de expertises, e a generosidade entre partes do mesmo todo que acentuam a força do teatro de grupo como sinônimo de resistência socio-político-cultural. Dialoguemos.

Dramaturgia da escuta

Em 2018 a Pequena Companhia de Teatro estreia seu novo espetáculo – ainda sem título definido –, que parte do conto A outra morte, de Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo. A montagem tem sua feitura dramatúrgica a partir da Transposição de Gêneros, sistema de adaptação literária desenvolvido pela Pequena – sobre o qual verso muito neste blog –, e que tive a alegria de fazer reverberar no projeto SESC Dramaturgias, ano passado.

Essa dramaturgia está em processo. Iniciada dia 30 de dezembro de 2016, uma série de etapas foram cumpridas – entre pesquisa, transporte de gênero e dramaturgias superpostas – e chegamos ao momento mais prazerosos; quando o esqueleto dramatúrgico desenvolvido passa a ser oralizado, para que eu possa ajustar o texto, percebendo intenções, embocaduras, e ir polindo o dito com a melhor ferramenta: a fala do ator.

Normalmente, essa prática ficava a cargo dos atores do nosso grupo, e esporadicamente algum amigo mais próximo nos auxiliava com a leitura do texto em questão.

Nesta montagem, e sem programar formalmente essa proposta, passamos a convidar outras atrizes e outros atores para nos auxiliarem na empreitada, e começamos um delicioso exercício de encontros, escutas, conversas, reflexões; alargando mormente a extensão da função das leituras, e possibilitando um outro estado de percepção da feitura dos conflitos.

Para mim, o exercício da escuta, quando estou escrevendo um texto de teatro, é revelador. Fazer parte de um grupo traz esse privilégio para quem escreve, pois dispõe do profissionalismo dos seus pares para que a vocalização da escrita se efetive, e se possa entender – dramaturgo, encenador, atores, produtora – como as palavras vão sendo salivadas, mastigadas, saboreadas e engolidas, até que reste apenas o sumo do que precisa ser dito, e sua forma.      

Estender essa experiência a outras vozes, então? É tão provocador quanto ouvir um sonho de Katia. Na pluralidade de tons, entonações, intensões, opções, resmungos, sorrisos, a contextura da dramaturgia vai ganhando conflitos; nós, argumentos. A ideia impalpável e fria da personagem – que até então era apenas um monte de palavras agrupadas em papel – ganha a materialidade polifônica que uma personagem escrita precisa ter para que desafie o próximo leitor a aturar a sua sina, porque se uma personagem não captura pelo menos um leitor, está fadada a adormecer eternamente entre as capas de um livro, ou muito pior, na sóbria combinação de magias informáticas que transformam a mais complexa personagem em um gélido arquivo de texto.

A singular experiência agrupa outros exercícios tangenciais, mas nem por isso menos provocativos. Ao nos imaginar recebendo amigos na sede, para uma leitura, a ideia de criar ambiências para elas foi imediata; saudando a generosidade dos leitores com uma estética que dilua qualquer vestígio de tédio que o convite possa despertar no coitado. Essa decisão, meramente formal, foi gerando uma investigação que, mesmo não tendo o compromisso de dialogar com a nova encenação, acaba possibilitando o terreno fértil para a experimentação de materiais, luminosidades, formações, dimensionalidades, alargando a colheita criativa que a proposta de ler entre amigos fertiliza.

Outro exercício é a própria reflexão sobre o dito. Inevitavelmente, o diálogo reflexivo durante e após a leitura se estabelece organicamente, já que o leitor se depara com a curiosa possibilidade do entrar em contato antecipadamente com os dizeres de uma peça de teatro que verá no futuro, quando da sua estreia. Essa abertura de processo não formal alimenta as reflexões que a confecção da dramaturgia no estágio atual necessita, e consigo desenrolar pensamentos complexos com a simples observação da sábia amiga que sentencia: é isso.

Quem diria. Para um sujeito artista, rígido e estruturado como sou, os desenlaces que uma sugestão simples e despretensiosa como a de “dar uma lidinha no texto” são de uma potência desajustada. Devem ser sinais de novos tempos, agora, que cinquenta anos de rigor já se passaram, e surge um novo velho homem. Dadá me conserve assim.

Por que escrever um texto de teatro?

Amanhã embarco para Teresina, finalizar minha participação no projeto SESC Dramaturgias, que me possibilitou exercitar um diálogo profícuo sobre o texto teatral e seus desenhos. Curiosamente, em 2017, me dedico à feitura do texto da nova montagem da Pequena Companhia de Teatro, que parte de um conto de Jorge Luis Borges intitulado A outra morte. Como minha escrita acontece concomitantemente ao atravessamento geográfico que o SESC me propôs, é natural que a nova dramaturgia venha contaminada de inúmeras problematizações que se agruparam no decorrer da vivência dialética provocada pela minha passagem por Caxias/MA, Vitória/ES, Maceió/AL e Teresina/PI.

O que é ser dramaturgo na contemporaneidade? O que compreende efetivamente essa função, quando descartamos as plurais dramaturgias atuais e nos concentramos no autor de textos teatrais – aquele maldito, anacrônico e solitário cidadão que senta em uma cadeira, diante de uma mesa, para escrever o que habita o palco, mesmo sem a certeza de que esse palco seja habitado por aquilo que ele escreve?

A minha particular condição me é favorável, pois, normalmente, o que escrevo vem sendo levado à cena por nosso grupo, e só escrevo pela necessidade de compor um dizer para esse fim; mas, como fica a vida do dramaturgo autônomo, aquele ser que não faz parte de um coletivo; aquele indivíduo que imagina poder construir um discurso com potência mínima que justifique a sua feitura e a travessia para a tridimensionalidade, independentemente de ter perspectivas de que isso aconteça?

O tema é delicado. Nas quatro cidades onde discutimos o assunto, durante meu perambular sesquiano, foi unânime a constatação da significativa diminuição do exercício da escrita para teatro; a redução de escritores que se dispõem a enfrentar o gênero dramático; a ausência de novos textos para possíveis montagens; a escassa produção literária do gênero. O que sim fica claro é o deslocamento do “modus operandi” dessa função, sua integração a um conceito maior de teatralidade, e suas flutuações de construção e estilo, com suas respectivas idiossincrasias; mas não é esse o foco desta postagem, e sim, a produção literária do gênero.

A quem serve, efetivamente, o texto de teatro isolado, escrito no gabinete, descolado do atravessamento cênico provocado por um grupo de teatro ou coletivo de artistas que o horizontalize? Será que ainda existe espaço para? Quais motivações ainda perduram para que um escritor pense em escrever para teatro? Sabemos que a finalidade de um texto teatral é o palco, e, naturalmente, o escritor desse gênero só encontrará sentido na sua produção se esta atingir esse fim. Então, que mecanismos a contemporaneidade oferece para que essa produção ainda faça sentido?

Como sempre consigo ser mais patético do que você imagina, vou me tomar como exemplo: um sujeito com parca produção dramatúrgica, que não tem isso como ofício, que não se alinha com a prática como mero exercício, e que nunca pensou em encenar os próprios textos – ressalvo que apesar da autoria das duas últimas dramaturgias da Pequena Companhia de Teatro, estas partiram de obras literárias já existentes, e coube a mim construir um dizer que, mesmo autônomo, se origina em outro suporte. Desde 2009 não escrevo um texto teatral que não esteja relacionado com algum tipo de encenação eminente, parceria pertinente, construção proeminente, ou pragmática contratação. Literariamente tenho até me dedicado a um romance em detrimento ao desejo de escrever para teatro (a perversidade do seu sorriso ao ler essa sentença escancara a sua sordidez, e posso até ouvir a sua sutil exclamação ao constatar minha pretensão: Você?!). O que motivou o arrefecimento da minha produção na última década, se em parte da década anterior produzi em média um texto por ano? (Como prometi, o tosco exemplo se ancora no patético proponente.)

Você deve ter percebido que hoje me dedico quase que exclusivamente a arguir, e penso que seja um sintoma do que está assentado. A contemporaneidade conseguiu esvaziar as motivações que justifiquem a dita dramaturgia convencional? Há redução de oferta, ou Caxias, Vitória, Maceió e Teresina são exceções que confirmam uma produção de textos teatrais prolífera, acentuada e relevante? Será sempre São Paulo o exemplo que vem à sua cabeça para fazer a réplica? Os grupos de teatro conseguirão oxigenar se alimentando apenas de narrativas próprias? A desnecessidade da escrita dramatúrgica pode apequenar a busca de conhecimento técnico e, com isso, reduzir a qualidade da produção? Ainda é possível qualificar um texto se está desconectado de um organismo teatral embrionário? O texto teatral descolado de uma montagem que o provoque ainda é necessário? É o crepúsculo do dramaturgo no seu sentido etimológico?

Claro que o cano das questões, com as críticas que se aderem, apontam diretamente para a minha cabeça, autor que estou de um texto teatral, transposto de um conto, construído dialogicamente, para ser montado pelo grupo de teatro do qual faço parte, e que há tempos não escreve sob outra condição. Logo, a provocação que lhe faço não é gratuita. Nunca foi. Pois, você, há anos, mesmo sem saber, vem servindo de cobaia, consultora, confidente, juiz, coautor, mártir, e espero que sua paciência e generosidade nos mantenha assim.  Portanto, me responda, ou me ajude a perguntar.