Teatro em movimento – a roda da fartura

Hoje encerramos o projeto Pai & Filho, pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, que buscou ocupar, com o maior número de atividades possíveis (apresentações, debates, oficinas e um fórum permanente de reflexão com um grupo de teatro convidado), o Centro-Oeste do Brasil (as cidades de Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e Goiânia/GO), região menos atingida pelas circulações da Pequena Companhia de Teatro até aqui, pois só Cuiabá havia nos recebido, em 2012.
É o teatro que nos move, literalmente. Nos movimentamos durante uma década, em todas as direções; seguimos por via terrestre, aérea, fluvial; de carro próprio, de avião, de van, de balsa, de ônibus, de camionete, de carroça (sim, nossos cenários já viajaram de carroça algumas vezes), e colhemos os frutos desse trânsito no olhar de cada espectador, de cada garçom, de cada companheiro de luta, de cada cidadão.
Plateia em Campo Grande
Na região central não foi diferente. O Centro-Oeste se apresentou como um outro Brasil, dos muitos Brasis distintos que carregamos na nossa memória, basilar para a composição deste país plural, heterogêneo, multicultural, ambíguo, desigual; carregado de tanta potência e desperdiçado por tanta incompetência – política, pois a soma desses muitos Brasis demonstra que um poder não é capaz de aniquilar a soma das vontades de uma nação.
Aqui, goianienses, primaverenses, campo-grandenses nos ensinaram que Panelinha, Mojica de Pintado e Sobá são manjares incomuns, que toda cidade tem os taxistas que merece, que árvore dá sombra, que teatro pode ser um belo programa de fim de semana, que existe um maranhense em cada esquina, que o valor de um real varia; e nos relembraram que toda plateia merece apreço, seja de vinte ou de duzentas pessoas, pois, sempre haverá um espectador atento ao trabalho de uma companhia de teatro compromissada com a reflexão sobre o nosso país.   
Oficina em Primavera do Leste
É impossível não pensar nas pessoas que encontramos pelo caminho; nos produtores, assistentes, atores, diretores, assessores, amigas,  recepcionistas, alunos, técnicos, tradutores; nos grupos Faces Jovem, Anthropos, e Mercado Cênico a materializar a importância da troca de experiências; na quantidade de gente que resolveu dedicar sua vida ao teatro e seu entorno, e no quanto essa escolha pesa, para bem ou para mal.
O país só será nosso quando nos apropriarmos dele na sua totalidade. É o que tentamos fazer quando circulamos. Nos apropriar de cada sabor, de cada costume, de cada gesto, de cada dificuldade, de cada paisagem, de cada distância; nos sentirmos donos de cada parte que forma esse todo chamado Brasil.
Espetáculo em Goiânia
Quando parados, aprisionados na nossa aldeia, não conseguimos mensurar o quão importante é viajar, conhecer, entender, refletir; e chegamos a duvidar do poder que o teatro tem de provocar a reflexão das pessoas, de abrandar convicções cristalizadas, de dar concretude ao pensamento crítico, de abrir o diálogo, de redefinir parâmetros para a vida. O teatro é importante para vocês, para nós.
Hoje falo na terceira pessoa do plural, pois, se bem sabemos que como grupo somos a soma das nossas particularidades, como indivíduos somos a comunhão da nossa mais profunda intimidade, mesmo sem ter a menor consciência disso. E que venha a segunda etapa do SESC Amazônia das Artes!

A política da preguiça

Em 2012, durante a nossa circulação pelo Palco Giratório, assistimos ao espetáculo Cabaré, do Teatro Faces, de Primavera do Leste/MT, e debatemos com eles a encenação – prática do projeto de circulação do SESC após as apresentações. Na ocasião, também encontrávamos o querido amigo Sandro Lucose, elo entre a longínqua apresentação e a nossa proposta de ocupar o município mato-grossense com todas as nossas atividades durante a semana que hoje se encerra.
O teatro tem dessas coisas: um espetáculo, uma conversa, um amigo em comum, um contato feito cinco anos atrás, reverberam nas trajetórias dos grupos e possibilitam encontros inesperados como o que estamos vivendo aqui, graças ao patrocínio da Petrobras, através do Programa Petrobras Distribuidora de Cultura.


Quando a Pequena Companhia de Teatro pensou o termo Teatralidades foi na perspectiva de extrapolar a ideia de circulação e tentar estabelecer um conceito de permanência, convivência, entrançamento e intercâmbio com a comunidade que nos hospeda, e o primeiro passo dessa ideia encontrou eco em 2015, quando da ocupação do Centro Cultural Banco do Nordeste, em Sousa.

Agora, com o auspício da Petrobras, a experiência se estende a outras três cidades brasileiras, quando nos instalamos durante uma semana no município e tentamos entender ao máximo sua gente, as agruras, desejos, conquistas e frustrações.

Claro que nossa observação está relacionada principalmente à forma como o teatro está capilarizado na comunidade, de que maneira está inserido no cotidiano da cidade, como se confrontam a obrigação do poder público de construir cidadania e a necessidade de responder ao mercado; tentar entender em qual pé está assentada a relação teatro & cidadão.

O que se vive aqui em Primavera é uma experiência incomum. Escola de teatro, grupos, centro cultural, secretário da área teatral com profundo conhecimento teórico e prático, alunos de teatro com bolsa de estudo, professores de teatro oriundos da escola contratados para lecionar, crianças brincando de teatro, artistas vivendo de teatro, teatro em árvore, teatro em caminhão cegonha, teatro de sombra, teatro na praça, teatro de graça; e o mais surpreendente, tudo isso em um município de pouco mais de cinquenta mil habitantes.

Claro que a primeira pergunta que emerge dessa pancada criativa é: como isso é possível? Um diagnóstico mais aprofundado exigiria muito mais do que uma semana, porém, a primeira resposta que encabeça todas as outras é: vontade política. Vontade política de abraçar boas ideias. Vontade política de identificar e apoiar projetos interessantes. Vontade política de criar condições para o desenvolvimento das artes. Vontade política de contratar seu secretariado por mérito. Vontade política de não se tornar um refém do voto. Vontade política de desenvolver uma gestão programada para todo o mandato, e não para o último ano. Vontade política de ser um servidor; ressalvando que, para servir, precisa-se de vontade – infausto paradoxo.

Em resumo, não há nada mais nocivo para a sociedade do que ver seus gestores alastrando sua melancólica falta de vontade e sua aguda preguiça intelectual.

 

Caminhando

No próximo domingo faremos a primeira apresentação de Velhos caem do céu como canivetes pelo projeto SESC Amazônia das Artes, aqui em São Luís, na sede da Pequena Companhia de Teatro, com entrada franca.
A partir daí iniciaremos uma nova caminhada, por toda a Amazônia Legal e o Piauí, em duas etapas, sendo a primeira Palmas/TO, Ji Paraná/RO, Boa Vista/RR e Rio Branco/AC, de 11 a 19 de maio.
O que move um grupo de teatro é o caminhar. Um caminhar no espaço, mas também no tempo. Assim como a Pequena Companha de Teatro tem caminhado por todo o Brasil, levando seu repertório para os mais diversos públicos, caminhou também no tempo que compreende uma década, para entender que suas conquistas são frutos desses dois deslocamentos – o temporal e o espacial.
A pulsação do viajar desorganiza, tira o artista da zona de conforto, desburocratiza, rompe as estruturas, subverte a lógica, nos surpreende com o caos. Por mais precavido que o coletivo seja, é na viagem que se revelam as rusgas, as falhas, os perrengues, as mágoas; trazendo para a berlinda tudo aquilo que o conforto do lar camufla.
Também com a viagem vem a partilha, o tratar generoso, a comunhão do olhar sobre o problema exposto, as soluções escalafobéticas, a certeza de que se está no caminho certo, quando esse caminho nos leva para aquele ponto do planeta em que só o teatro nos faria chegar. Aquele lugar onde o público, que não faz a menor ideia de quem você seja, lhe mostra a importância do que você faz, provando que, no teatro, caminhar é fazer.
Caminhar é fazer escolhas, buscar rumos, trajetos, destinos, encontrar bifurcações, rodar em círculos, passar do ponto, errar a rota, descarrilar, mas manter-se em deslocamento, sempre, para sentir-se vivo, mesmo quando a inércia, essa sedutora contumaz, oferece o acachapante conforto da quietude, nos convencendo de que não adianta mais tentar avançar.
Como diria o poeta Antonio Machado: “Caminante, son tus huellas el camino, y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino, sino estelas en la mar.” Caminhemos!