Enquanto nós latimos, a caravana passa!

Nós, artistas, temos por hábito reclamar da gestão, e atribuímos grande porcentagem da nossa desdita à incompetência gerencial de toda e qualquer instituição, seja ela pública ou privada. Hoje tenho um fato que me permite fazer de advogado do diabo, e desenvolver uma análise que fará o contraponto a essa permanente vigilância, virando a metralhadora contra nós mesmos.

Embarco, neste exato momento, para Macapá. Ano passado participei do SESC Dramaturgias, como tanto tratei aqui; e qual foi a minha surpresa e alegria ao receber o convite para participar novamente este ano, agora com a oficina sobre a dramaturgia do ator? Mas, o maior espanto não veio com o convite, e sim, com a necessidade de mudança do formato anterior, pois os resultados atingidos no ano passado não alcançaram as expectativas.

Explico: em 2017 o projeto oferecia oficinas de dramaturgia com formato de 32h/aula, divididas em dois encontros, com um significativo tempo de estudos, maturação e produção entre um encontro e outro, iniciativa que me era muito cara, como destaquei aqui, aqui, aqui… Eis o meu assombro quando recebo a informação de que o formato agora obedeceria a carga horária de 20h, em um encontro único. Ao indagar os gestores sobre os motivos da mudança, recebo como resposta o argumento que é objeto da reflexão que hoje proponho: na maioria das oficinas ministradas se comprovou um esvaziamento significativo entre o primeiro encontro e o segundo.

Como? A instituição oferece maior carga horária, dois momentos para aperfeiçoamento da pesquisa, intervalo entre os encontros para desenvolvimento das práticas – aumentando despesas, exigindo grande empenho por parte dos idealizadores para sensibilizar os promotores – e a classe artística responde com evasão, desinteresse, desprestígio? Se fosse um caso isolado poderíamos atribuir o fato à qualidade profissional do oficineiro, mas, sendo a grande maioria, a teoria cai por terra antes mesmo de levantar voo.

E daí vem a provocação que hoje faço: é muito fácil reclamar, exigir, reivindicar; difícil é trabalhar, pesquisar, estudar, praticar. Como pode ser que percamos algo tão valioso por pura displicência nossa? Não é o primeiro projeto, edital, programa, fomento, que perdemos por falta de empenho, disposição, prontidão, assiduidade e, claro, reivindicação.

Como sempre dou a primeira cajadada em mim mesmo, me perguntem quantas oficinas do SESC Dramaturgias frequentei antes de ser convidado para participar do projeto como oficineiro? Nenhuma! Sempre tinha uma circulação, uma montagem, uma visita, um jantar, um jogo de botão. Será? Ou sou gênio demais, e não tenho nada para aprender com artistas que admiro como Fernando Lopes, Wilson Coelho, Vinícius Piedade, Pedro Vilela, Henrique Fontes, Altemar Di Monteiro, só para citar amigos? Entendem onde quero chegar? Quanto nós, artistas, somos responsáveis por nossa condição? Estou eximindo os gestores? Claro que não. Eles têm a obrigação de atender as demandas de uma classe, mas se a oferta não for absorvida, evidentemente que a reivindicação escancara sua esterilidade. 

Como no caso que hoje problematizo: quantas vezes reclamamos que as atividades formativas precisavam alargar a sua carga horária, pois as práticas recentes estavam mais para pequenas vivências que para oficinas propriamente ditas? Quantas discussões perpassaram o assunto nesta mesma sala onde agora escrevo, com atores das mais diversas funções do fazer teatral? E quando se disponibiliza uma atividade com carga horária que se equipara a de meia disciplina de qualquer curso superior – o que não é pouco para uma oficina – respondemos com evasão.   

A crítica à gestão, seja pública ou privada, essa vocês conhecem, e está em uma porcentagem significativa de tudo o que escrevo aqui. Hoje queria tentar fazer uma avaliação sobre as nossas responsabilidades. Alguém reclamou da mudança do formato do SESC Dramaturgias para uma carga horária menor? Alguém poderia reclamar, com a assiduidade que apresentamos? Enquanto não tivermos o entendimento da responsabilidade que uma reivindicação gera naquele que reivindica, continuaremos bradando indiscriminadamente, reivindicando o óbvio; e seremos tratados como bufões, arautos do caos, bocas-de-confusão.

Claro que, a partir da postagem, o artista absoluto saltará em defesa de si próprio, tentando virar a metralhadora novamente para o projeto ou a instituição, dizendo que blá-blá-blá. Pare! Que, neste caso específico, fica feio. Os fatos são irrefutáveis até para mim, defensor ardoroso do formato anterior, e crítico contumaz de tudo e de todos – os números inibiram a minha réplica quando se fez necessária.

A poética da vadiagem

Estamos em Campo Grande. Fazendo o quê? Que bicho é esse que nos move, nos faz sair de casa, enfrentar o abismo, atravessar o país de norte a sul, de leste a oeste, claudicar nas vias tortuosas da geografia humana sem agarrar nada palpável, nada concreto, somente a memória sensória dos que nos abraçaram, dos que nos assistiram, dos que nos provocaram, dos que nos ensinaram? Que bicho é esse, alcunhado de teatro, que mesmo não nos deixando nada nos enriquece de tudo? Que bicho é esse, bicho?

Retumbo na cama, pós-espetáculo, e continuo remoendo e tentando aprender algo sobre o espetacular; esse momento que não é nada, mas que se arraigou em nós como se conseguisse ser tudo. Bichos de teatro são espécimes em extinção. Arvoram um momento único, mesmo na repetição infinda de sequenciais apresentações, e florescem a cada encontro como novos, contaminando a existência de outros seres, sem perceber que o contaminante teatro os carcome, sorrateiramente, a cada noite bem dormida. É nessa hora que se processa o milagre: dorme o ingênuo ator, o tolo encenador, e o sono é a terra insensata e infértil onde germina o teatro. É lá que se planta o desespero, o espanto, o assombro, e amanhecemos com uma vontade imensa de continuar avançando para lugar nenhum; pois nosso lugar é o todo, a totalidade, o nosso país.

“Batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão”. Somos batatinhas. Já nos espalhamos por sessenta e nove cidades, e Dourados será a septuagésima; mas, ainda não entendemos por que fazemos isso. Servimos a um exército de desvairados que busca o diálogo presencial em um mundo de “reacionamentos” virtuais. Nova cidade e nova esperança de encontrar. Encontrar respostas. Encontrar abraços. Encontrar perguntas. Encontrar soldados. Encontrar pessoas, de carne e osso. O teatro é de carne e osso. E nossos ossos, atrofiados pela eterna vadiagem territorial que o teatro nos impõe, vão tentando se rearmar, récita a récita, para receber como paga final a dança de esqueletos chamada abraço.

Em poética dialética, um ser humano diz para um ser alado, – Ensina-me a voar; e segue argumentando que é para poder respirar. É para isso que vagamos Brasil afora, para poder respirar. É no voo do gigante pássaro de ferro que deixamos a terra que nos marcou e voamos para o sem-fim, respirar o ar do desconhecido, do novo, do desafio. Para continuar tentando descoser essa trama absurda de “não ter poder de escolher nossos governantes”, de “ditadores que pensam igual”, “de parecer uma segregação”; para gritar contra a desigualdade, o extremismo, a multifobia, o racismo; para não ficar “mudo e quieto como querem que permaneçamos”; para tentar descompassar essa folia polifônica de descalabros que o mundo se tornou – se você não entendeu as aspas é porque não estava em nenhuma das setenta e três tempestades de seres alados que aconteceram em todo o país desde 2013.

Deixaremos Campo Grande para trás, mas Campo Grande não nos deixa. Ele estará conosco em cada um dos 40 participantes da oficina, dos 336 espectadores, dos 70 alunos, dos 10 professores, dos queridos amigos do Grupo Casa que reflexionaram permanentemente conosco durante estes sete dias. O Programa Petrobras Distribuidora de Cultura apresenta Velhos caem do céu como canivetes, e nós tentamos representar nossos anseios, nossos medos, nossas faltas, nossas lutas. Malucos que somos, fazemos isso no tête-à-tête, na cara do espectador, para que ele possa esfregar na cara o tamanho da nossa inutilidade. Você teria coragem?

Manual básico para errar o alvo

Aqui é diferente. Pensar na postagem de hoje sem ser redundante com tudo o que escrevi na postagem A política da preguiça será meu grande desafio, pois tudo o que vivemos em Primavera do Leste, dois anos atrás, dilata-se, em potência e qualidade na atualidade, e nos espanta.
Então, para não chover no molhado, assentarei meu raciocínio em um único ponto de apoio: a oficina de dramaturgia do ator que ministrei; sustentando a argumentação na significativa diferença de comparecimento, rendimento e compreensão, quando observada a adequação da clientela.
Nos plurais projetos, eventos ou programas onde sou requisitado para ministrar oficinas – e a propriedade da minha reflexão tenta se balizar nas experiências vividas em 27 cidades de 14 estados –, sempre nos deparamos, promotores e eu, com as agruras referentes à dificuldade em formar a turma em questão; e o principal desafio é adequar a clientela.
As consequências de não conseguir a clientela específica para uma oficina são sempre as mesmas: evasão, ininteligibilidade do conteúdo, nivelamento para baixo etc. No caso da nossa oficina sobre o Quadro de Antagônicos, o público-alvo são atores, alunos de teatro de curso técnico ou superior, artistas de teatro, encenadores e pesquisadores com interesse no desenvolvimento de dramaturgia a partir do ator. Quando essa observância consegue se efetivar, tudo flui com potência; e é aqui que entra a nossa experiência em Primavera do Leste, onde das vinte e cinco atrizes e atores que iniciaram a oficina, vinte e quatro concluíram. Aqui, a atenção para a formação da turma conseguiu dirimir praticamente todos as agruras do que falei acima: evasão praticamente inexistente, interlocução efetiva e aprofundamento substancial do conteúdo preconizado.  
Então, como conseguir esse resultado, sem ser excludente, garantindo a ocupação da totalidade das vagas oferecidas, e sem comprometer a oficina, tendo em vista que a não adequação da clientela exige uma adaptação inconveniente do conteúdo? Vivo esse conflito quando me deparo com um convite que me transforme em oficineiro, e vou tentando achar algumas pistas para solucionar essa problemática, através das minhas experiências recentes.
A primeira prática tem sido a de não limitar o número de inscritos ao número de vagas oferecidas. Temos estendido as inscrições a um número 30% maior que a oferta, pois o tamanho da diferença numérica entre inscrição e comparecimento no primeiro dia de oficina, em alguns casos, chega a ser um enigma indecifrável – o que faz uma pessoa se inscrever em uma oficina, ocupar a vaga de uma outra, e não comparecer?
Outra prática é a pessoalidade. Independentemente da extensão e alcance da divulgação do projeto que contempla a oficina, procuro encontrar nas cidades que visito, aquelas pessoas que imagino terem interesse na atividade, e tento convencê-las, particularmente, através de mensagem, e-mail, apelo, ultimato, chantagem – prática que você, leitora e leitor deste blog bem conhece –, do quão significativo pode ser para mim a sua presença para que a interlocução proposta pela atividade se estabeleça.

Também, a não limitação de vagas tem gerado o excedente necessário para que a própria oficina se encarregue de adequar a clientela, sem comprometer o preenchimento do número de vagas oferecidas. Ao ter mais inscritos, oportuniza-se que o interessado possa ter contato com o conteúdo e suas práticas, e decidir com maior propriedade se a atividade lhe é oportuna, fazendo com que sua possível desistência no primeiro dia (outra situação frequente) não seja uma evasão e sim um ajuste do público-alvo, pois esse desistente normalmente está contemplado no número excedente de inscrições.
São pequenos deslocamentos de práticas que venho observando na tentativa de tornar a oficina eficiente para o participante, para mim, e para quem contrata, lógico. Claro que Primavera do Leste não serve de parâmetro, pois a realidade que se vive aqui é inusitada – tão surpreendente que vou ofertar novamente o link que você desprezou acima, para que leia a postagem sobre –, mas esta nova experiência de conduzir atividades formativas pelo Programa Petrobras Distribuidora de Culturatem possibilitado novas percepções que fazem com que nos movimentemos no sentido de dar maior ressonância a toda e qualquer atividade da Pequena Companhia de Teatro que seja financiada com recursos públicos, mesmo que através de renúncia fiscal. Compromisso político de que não abrimos mão, mesmo quando o poder público abre mão do teatro de grupo.