Ensaio sobre a desordem

Queria ser Lirinha, Macedônio Fernandez, Emir Kusturica, Baskiat, Arnaldo Antunes, Carlos Motta, Goyeneche, Luiz Buñuel, Bukowski, Gero Camilo. Queria ser tantos que não sou e sou aquele que se fez dos tantos que não fui. Um universo de desejos ocultos no abismo do encantamento provocado pela arte. Flutuo entre os que não fui. Sempre nadei no desejo, orbitei e flertei com o “se”. Se eu tivesse se eu fosse se eu pudesse se eu fizesse. Sempre me plantei como um invejoso impudente. Invejo os geniais, os anárquicos, os espontâneos, os intensos, os imprevisíveis. Invejo sem pudor, com o frescor do próprio desacato que invejo.

Às vezes me arrebata um desejo de ser o que faz a diferença, o que opera o trânsito entre o sonho e a realidade. Dentro desse encantamento por desvendar, desvelar, desencadear, desenvolver, me encontro em processo, absorto pelo buraco da razão que me obriga a enxergar quem sou. Sou aquele do desassossego. Do destempero abismal. Sou o autor das minhas falas, o detentor do meu corpo, o faminto das colheitas, o trôpego amuleto que finge funcionar. Não funciono. Me funciona o tempo, e nele navego esperando o fim.

Num ensaio camuflado de prosa poética sobre meu ser, me deparo com o ensaio que ensaiamos. Ensaio sobre a memória me recorda quem somos. Somos nós. Oculto do espectador, a estética conta nossa história, algumas anedotas, e outras falhas do tempo. Num jogo de adivinhação convido você a procurar na cena as mil imagens de um autor, o jogo que carrega quarenta anos de tempo, a missiva de uma sorte militar, os descartes de um trapalhão, o designer frustrado, as tantas memórias que construíram uma cena falante, emudecida pela crueza da nossa falta de memória.

Sim e não. Numa ficção colapsada, entendemos de misturar documentos físicos aleatórios, sabendo que o espectador não vê, mas, defendo: o ator sim. O apuro da cena busca o diálogo, mas antes do encontro com o espectador, está o diálogo da cena com o ator, aquele que instrumentaliza o objeto, aquele que dá vida ao símbolo, aquele que ressignifica. Esse, vê, toca, e precisa acreditar para que o espectador possa crer. Tassia tremeu ao falar da missiva. Tergiverso? Confundo? Omito? O espetáculo brinca com isso também, e eu embarco no exercício de confundir o leitor, esse que será espectador, quando estreie o ensaio de todas as fissuras que o tempo pode ter.

Labirinticamente me espelho no eterno retorno e enfrento minha inveja. Invejo ser pedante, que usa sua invídia para se maldizer pelo que não é. Retórica da postagem anterior, não encontro meios de fugir de mim sem que as falhas deste quasímodo assustado convirjam para o poço de incertezas criadas pela arte. Nada tenho que já não tenha sido vomitado. Nada digo que não tenha sido sonegado. Nada crio que não tenha sido cansado.

Hoje escrevo conduzido pelo desajuste do cérebro, sem organizar nem formatar o discurso que tanto cansa você semanalmente. Não consigo dizer exatamente o que quero dizer. Não sei bem se quero dizer o que digo. O fracasso da postagem se aproxima, sem garantir ao leitor a sentença final. A máxima absoluta. A verdade implacável. O pentagrama incorruptível.

O destino do labirinto é perder você no desejo de vir ver o que o teatro ainda pode dizer. Ensaio sobre a memória. De 01 a 06 de maio, 19h. Duas sessões na sexta e no sábado, 19h e 21h. Aqui, na Rua do Giz, 295. Pague R$ 30,00, ou R$ 15,00, mesmo sem costume, já que viciamos você em ver nossa obra de graça. Faço graça. Não me entenda. Não hoje. Não me organize, não hoje. Não me cobre, não hoje. Não me abandone, não hoje. Sou o ser que lhe restou para amparar. Me ampare, me acoberte, me justifique, me entenda, me descubra, me leia. Se na páscoa ele ressuscitou, minha relação com a arte sempre será de Sexta-feira da paixão.

O Quadro de Antagônicos e a vida que segue

Dia primeiro de maio de 2019 estreia Ensaio sobre a memória, novo espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, com dramaturgia minha, a partir do conto La otra muerte, de Jorge Francisco Isidoro Luís Borges, com Tassia Dur, Katia Lopes, Lauande Aires e Cláudio Marconcine no elenco. Sem sombra de dúvida a montagem mais complexa, mais difícil, mais problemática, mais fragmentada, mais longa da trajetória da Pequena, e arrisco cravar, da minha carreira. De Velhos caem do céu como canivetes a este ensaio sobre os vaivéns da história e sua fraca memória, vão-se cinco anos e seis meses, o espaço mais longo entre montagens do nosso grupo, e arrisco… não, prefiro não arriscar; de riscos, já basta o teatro.
Ofício de riscos, mas nunca tão plenos quanto hoje. Esta não é uma montagem qualquer. Ela é construída de vazios, de ausências, de faltas, de angústias, de desalentos, de desânimos, de solidões, de borbotões, de borboletas, de botões, de tudo o que desanda e tudo o que confessa. É uma confissão para os novos tempos. É uma experiência desatada, uma garganta desenfreada, uma lacuna de confidências, uma desigualdade. É o diagnóstico do que se tem, a causa do que se provoca, e a cura do mal que não cabe em si. É dizer sim. Sim ao fazer, sim ao teatro, sim ao gesto, sim ao feto: nasça; ainda haverá teatro.
Esse meu preâmbulo rasgado, dilacerado, nada mais é do que um exórdio, um introito uma prefação: não diz nada. São só os acordes dos meus instrumentos de trabalho desafinados: o coração, o cérebro, o que resta deste corpo decrépito, e as mãos, que já não aguentam cortes, golpes, furos e ardores. Prelúdio para falar do que não quero falar: o impudor que um dizer pode ter no trato com métodos, formas, conceitos, procedimentos, amarras, gostos, gessos e estratégias.
Desde que esta montagem começou… minto, desde que o processo da dramaturgia fluiu, percebi que muito do que a Pequena Companhia de Teatro sedimentou como sendo seu patrimônio conceitual, seu arcabouço estruturante, não serviria para dar a retumbância poética e a potência que o nosso ensaio sobre uma memória historiada demandaria. O Quadro de Antagônicos, com seus procedimentos, rotinas e ritos, não seria aplicado com a disciplina, rigor e contundência que nossas encenações exigem, pois o instrumento não contemplava as demandas desta nova montagem.
Mas, como abrir mão de um trabalho, de uma pesquisa, de uma trajetória apenas pela necessidade de construir o ambiente necessário para um espetáculo? De onde extrair a coragem para usar o Quadro tangencialmente, perifericamente? Qual foi a minha surpresa ao constatar que a ruptura seria muito mais aguda do que o mais contemporâneo dos Marcelos Flechas poderia imaginar? Enquanto eu me digladiava com a ideia de abjurar um organismo que nos é tão caro, a cena já o havia feito sem a menor parcimônia, sem o menor constrangimento, sem a menor compostura. Me desconheço como encenador na montagem Ensaio sobre a memória. Não sei quem sou. Não sei que diretor fui. Não tenho registro de mim, do meu fazer. O ensaio me conduziu. Reformulei rotinas, diversas, no mesmo dia. Tudo foi tão urgente que me engoliu. Fui levado pelo grito da cena. Fui arrastado pela vicissitude dos milagres. Fui encorajado pela confiança no dito. Fui tragado pela agonia de correr o risco. Fui desabitado de mim, pela necessidade de pôr à mostra a falha terrível que pontua nosso presente: ser um país sem memória.
Mas este rompante, esta desconversa, pontua o principal imbróglio da não conversa que tento acentuar aqui: qual a dose de oxigenação certa para práticas acertadas, métodos estruturados, sistematizações pragmáticas? Não é mensurável para mim hoje, mas não sobrecarrego a ansiedade, já engordada pela própria natureza da fragilidade de quem lida com a criação artística. Sustenho a máxima que gera todo o meu fazer artístico desde que enveredei pela estéril arte do agora: tudo sempre está a reboque da obra de arte. É ela que demanda, que guia, que ordena, que exige, e por ela devemos sucumbir, surrupiar, abandonar, voltar, recorrer, surtar. Se a obra pede o exílio, exílio será. O desterro, desterrado. A clausura? Clausurado.
Contudo, essa extrusão, esse alvedrio, essa opção por abdicar do nosso método garante alguma coisa? Não. O que isso significa? Não sei. Talvez um espetáculo menor. Talvez um hiato, um interstício, uma terceira margem. Talvez uma desilusão para os puristas. Talvez mais um espetáculo honesto, feito por artistas honestos. Pouco importa. De certo, a seta: esse era o caminho a seguir, e ele urgia. Não titubeio quanto a essa opção, e por isso hoje falo em primeira pessoa, apesar de estar tratando do complexo experimento coletivo chamado teatro. Fui o responsável por essa opção, para espanto de alguns pares, conivência de mais de um, e decepção de outros.
Se esse spoiler – e você me vendia avelhantado e obsoleto – não te fizer correr para ser o primeiro da fila na estreia, parei contigo.

Partes de mim

Semana passada estive em Mossoró, para a serenata surpresa e íntima, promovida pela “A Máscara”, e dirigida por Damásio Costa, para uma das minhas amigas mais queridas, a atriz Tony Silva. Aproveitando a ocasião, pudemos espremer o tempo e avançar nas discussões e procedimentos da próxima montagem do grupo, prevista para 2019, com direção minha, como você já sabe, pois leu aqui.

Nossa discussão, que se encaminhava para a adaptação do romance “A Polaquinha”, de Dalton Trevisan, sofreu um pequeno revés, e nos percebemos discutindo pertinência, contemporaneidade, desejos, oportunidades; definindo que será uma das nossas três montagens juntos, mas não necessariamente a primeira.

Esse titubeio oxigenou meu discernimento e alimentou o assunto da escrita semanal que me imponho aqui, e que tem sido motivo de análise severa quanto a efetiva necessidade da permanência do exercício, tendo a falta de frequência como aliada na argumentação para a suspensão do martírio de me revelar semanalmente. Inflamável, o conflito explodiu nas entranhas e sangrou, expondo as vísceras do teatro de grupo na contemporaneidade: o que dizer?

Minha tentativa hoje é discorrer sobre todas as influências que afetam uma opção orgânica de temática definida por um grupo e as consequências que essa ponderação possam infligir na obra de arte em questão.

Como sempre me apresento como vidraça, digo: a Mulher, personagem emblemática da nossa próxima montagem, foi vestida durante um período pela atriz Jyesse Ferreira, em um desempenho preciso que oferecia a representação exata que a personagem demandava. Somava-se a essa sorte, a imagem estética do corpo total da atriz, que traduzia a Mulher com acerto. Em um determinando momento do processo, quando nos deliciávamos em descompromisso criativo experimentando aleatoriamente propostas dos atores para o figurinos das personagens, me deparo com a concretude da Mulher: Jyesse, com sua particular beleza, descalça, com uma saia volumosa e patética, e nua no que se refere a todas as partes do corpo que o pano não cobria. A Mulher perfeita. Não como símbolo de perfeição, percebam que escrevi com maiúscula, pois a personagem se chama Mulher, logo, a personagem perfeita. Tergiverso para atiçar a sua curiosidade.

Você deve estar se perguntando, o que essa glosa significa? Qual a relação com o dizer desta postagem? Revelo: após o registro da imagem epifânica pelas minhas retinas, me deparei questionando a opção. Em trinta anos de teatro, nunca havia vivido a sensação de confrontar uma demanda orgânica da cena com o entorno com a qual ela vai dialogar. Falamos de censura, de conveniência, de cuidados, de enquadramento, de todas uma hermenêutica que jamais deveria habitar o diálogo de uma obra de arte em construção.

Eis a questão. O quanto o mercado, as curadorias, o espectador, o viés político   tem influenciado as opções do teatro de grupo na contemporaneidade? Quanto a conveniência influencia a cena? Tenho me deparado com uma frequência fenomenal com comentários referentes às motivações que determinaram o destino de encenações das mais diversas: ter uma pegada mais contemporânea; uma estética mais enxuta para facilitar a circulação; o problema da internacionalização é o idioma; preferimos não arriscar para não limitar; o espectador quer se divertir; melhor evitar polêmica; melhor provocar polêmica…

O que deve ser incorruptível em um dizer artístico? Até que ponto a concessão é uma arma ou uma farsa? Não caberia à arte a crueza da verdade necessária, independentemente do diálogo com o seu entorno? Não caberiam às vanguardas o não enquadramento? Fazemos teatro ou promovemos unanimidades? Provocamos ou pasteurizamos?

Mesmo depois de trinta anos tropegando nos trilhos tortos do teatro de grupo e seus azares, a experiência não me brinda com a serenidade típica e cadenciada da idade. Hoje, estou pouco confortável com a nova ordem que se desenha. Não me sinto em condições de arbitrar valor ao caminho mais acertado para decompor tudo o que está posto e provocar uma nova desordem. Insistir na ruptura? Investir no decote? Como se estrutura a cena cíclica do mundo? Como progride um universo; do caos ou da harmonia? Queremos aceitação ou queremos transgredir? Qual é o meu lugar na cena? Qual é o lugar do teatro de grupo?

Outro dia escrevi que decidi ser jovem depois de velho, e cheguei atrasado. Blefe? Continuo um velho empedernido? Você me vê transigindo com o que não me representa pelo valor atribuído aos vinténs da contemporaneidade? Você me enxerga enquadrando uma obra para ampliar a repercussão do seu dizer? Você me entende como sujeito de uma construção pré-moldada? Você reconhece o dilema ou acredita no meu jogo de cena? Não, não são perguntas retóricas. Me responda: como você me vê?