O maldito vídeo do espetáculo!

Desde o Festival de Teatro Sul-Maranhense, em Balsas, nos idos 1989, até o Boca de Cena, este ano, em Campo Grande, participo de festivais e mostras de teatro pelo país das mais diversas formas; seja como curador, participante, selecionador, debatedor, organizador, concorrente, promotor, selecionado, jurado, oficineiro, mediador ou programador, dependendo da década e do formato do evento.

As experiências me trouxeram diferentes aprendizados que não caberiam em uma postagem. Portanto, hoje me concentro em uma condição que vem perseguindo meu juízo e sendo um dos meus maiores motores de reflexão no que se refere aos eventos que promovem encontros de grupos teatrais: o quanto o teatro ficou dependente de uma tecnologia que deveria servir apenas como instrumento de registro, o vídeo.

Me assusta a transferência de responsabilidade que acontece entre o ato teatral e o registro videográfico, instrumento normativamente impossibilitado pelos festivais de operar códigos da linguagem cinematográfica – única alternativa para que um registro em vídeo consiga aproximar o espectador do espetáculo teatral e sua ambiência –, mas obrigado a apresentar o máximo de identidade possível com a peça em questão.

Claro que a dependência da qual trato aqui diz respeito aos mecanismos de seleção e curadoria postas no país atualmente, quando o destino do espetáculo depende da apreciação, em vídeo, dos inscritos, nas mostras por parte do selecionador contratado para a tarefa – metodologia aplicada para a seleção da programação na grande maioria dos festivais e mostras do país. Essa trágica condição reduz toda uma linguagem a nada. Todo e qualquer esforço teatral fica sujeito a uma filmagem, e às coincidências entre linguagens que possam favorecer e aproximar uma peça de uma tela.

Na minha última experiência como selecionador do material em vídeo enviado para o Boca de Cena, fiquei assombrado com a dependência e comprometimento do trabalho artístico quando a atenção para o registro em vídeo não apresenta a mesma atenção dedicada à própria montagem. Um sem fim de imagens borradas, saturadas, escuras, áudios ininteligíveis, personagens fora do quadro, mídias vazias, danificadas; um caleidoscópio de tudo o que não se deve fazer se queremos que o espetáculo tenha alguma chance. Claro que a argumentação óbvia caminhará no sentido de aperfeiçoar a qualidade do registro, e a mesma réplica se encarregará de assegurar que o olhar do profissional contratado para a função tenha o treinamento necessário para fazer as desconsiderações pertinentes a cada caso. Porém, o que quero observar não trata da incompetência do grupo em fazer o registro, nem da genialidade do olhar do curador que consegue transformar registro em vídeo em teatro vivo. Trata de que essa não deveria ser uma expertise do grupo de teatro: a obrigação do artista teatral é operar os códigos da sua linguagem – o que não é pouco – para conseguir um resultado artístico contundente o suficiente para que se queira ver nos diversos polos de mostragem chamados festivais. Somar a essa exigência a representação do espetáculo em vídeo, sem deixar que se utilizem os códigos da linguagem do cinema, me parece uma demanda descabida. Mesmo que o grupo contrate o melhor cineasta do país, sem operar linguagem, esse profissional não será capaz de aproximar o espectador da experiência teatral.

Porém, se é o que está posto, como resolver o imbróglio? Agora, educada leitora e paciente leitor, me permitam falar especificamente para a cena teatral sul-mato-grossense – última experiência de seleção que participei – e tentar contribuir de alguma maneira com umas observações. Penso que é através da representação. Estudar de que maneira a imagem captada representa o espetáculo visto. Mesmo que o edital exija um plano sequência fixo e geral, estudar as adequações necessárias para aproximar o observador da cena. Detalhes simples, mas que podem fazer a diferença; como o de jamais reservar um único momento para o registro; fechar a roda no tamanho do enquadramento, se o espetáculo for de rua; nunca deixar uma fala ou cena fora do enquadramento, se esta for estruturante da narrativa.  Porém, se não for possível, pelo menos concentrem energias na qualidade técnica da imagem e do som. Dediquem-se ao registro como se fosse parte do processo. Pensem nele com excelência. Desde o meio de microfonar até o teste da mídia em diversas máquinas; desde a resolução da imagem do link disponibilizado, até a conferência da senha, caso seja necessária. Atentem a todo e qualquer detalhe que possa piorar a já comprometida relação entre o responsável pelo destino do seu espetáculo e a imagem capturada por vocês para que ele tente se sentir no teatro – essa doce ilusão que atende pelo nome de vídeo completo do espetáculo. E se não conseguirem, pois as condições de produção do seu grupo são tão amargas quanto as condições do teatro de grupo no Maranhão, talvez sirva de consolo saber que a Pequena Companhia de Teatro tem os mesmos problemas e comete os mesmos erros desde a sua gênese. Falar é fácil.

Agora, se é o que está posto, por que está posto, e por que deixamos que alguém assim o pusesse? Perceba que voltei a falar com você, leitora e leitor, que não necessariamente mora no Mato Grosso do Sul. Isso é que são elas, e, como nunca tenho respostas, busco nas postagens o diálogo que me permita entender a condição, estruturar um pensamento, e aglutinar iniciativas que possam mudar esse quadro, antes que o quadro mude o teatro de grupo do país. Como chegamos a isso? Como desmontar uma prática que achata o resultado artístico de um espetáculo teatral? Como contestar essa exigência sem ficar à margem dos festivais? Como disponibilizar o acesso qualificado a uma produção teatral produzida nos confins do Brasil?

Claro que se você vive em outro planeta, mais especificamente em São Paulo, não deve fazer ideia do que eu esteja falando. Pois aí o curador consegue ver o espetáculo teatral ao vivo, sem pagar logística nem cachê pela apresentação, e o grupo ainda agradece a oportunidade. Adoro uma fofoca.

Teatro de grupo: o grito que não se cala

Sorrateiramente, a atual conjuntura político-cultural brasileira, que atende pelo nome de desmonte, ataca o teatro de grupo do país no seu ponto mais sensível: a montagem de novos espetáculos. Nos últimos tempos, acompanhamos o minguar de toda e qualquer iniciativa do Ministério de Cultura no que se refere a projetos de apoio a montagens inéditas, e a consolidação dessa realidade não é fortuita.

Se a ideia é desconstruir a teia de pensamento reivindicatório que o teatro de grupo representa – com sua profunda capilarização por todo o país –, qual a melhor forma de descoser essa potente rede de contestação? Atacando a produção inédita.

Perceba que projetos de circulação, apesar de escassos, ainda perduram nas esferas públicas e privadas, contudo, todo e qualquer programa que incentivava novas montagens desapareceu como num passe de mágica. Com isso, enquanto circula-se pelo país com o repertório existente, vai se perdendo o fôlego que o novo espetáculo dá para a continuidade da trajetória dos coletivos do país; ou seja, um desmonte sorrateiro, perspicaz, ladino, criminoso. Quando grupos menos estruturados, ou com menor poder de articulação, forem pleitear os poucos projetos de circulação que ainda existirem, perceberão que não conseguiram viabilizar um novo espetáculo para circular, fazendo minguar o volume de novas montagens no país. Por consequência, ao constatar o encolhimento da produção de novos espetáculos, o próprio projeto de circulação remanescente passa a não fazer sentido, justificando-se a extinção, e consolidando o desmonte da rede de grupos. Nem montagem nem circulação; cala-se o grito.

Agora, o que os detentores do poder já deveriam ter entendido é que o couro do teatro de grupo do país é feito de uma textura indefectível e indecifrável; ele não rasga, não tora, não pui, não cede; está além da vaidade individual, além do mercado, além das prioridades pessoais do artista; ele resiste porque seu objetivo sempre foi a consolidação de uma sociedade mais justa, igualitária, humana. É o que o teatro de grupo busca com sua inacabável resistência, embrenhada nos mais recônditos recantos do país.

Portanto, não adianta puxar, esticar, pressionar, desmontar, pois, a nova montagem é a principal arma de contestação de uma companhia de teatro, e para manter esse instrumento vivo, os coletivos sempre reinventarão mecanismos outros que os postos no seu tempo, colaborativos, autofinanciados, agregativos, comunitários, pactuais; garantindo o grito que um novo espetáculo dá, quando a cortina se abre pela primeira vez.

Claro que grupos ficarão pelo caminho, outros se dissolverão por acreditar na oratória do mercado, alguns tropicarão entre sonho e realidade, diversos cederão aos apelos do consumo; mas a grande maioria dos grupos de teatro deste interminável Brasil resistirão, como sempre, por entender que a sua responsabilidade transcende o desejo individual. Ela evoca o bem comum, único objetivo que faz com que os artistas mais diversos se congreguem nessa difícil e desafiadora micro-sociedade-igualitária chamada grupo de teatro.

 

Uma pequena volta por Campo Grande

Na próxima terça-feira a Pequena Companhia de Teatro retorna a Campo Grande, cidade ocupada com nossas atividades artísticas em 2016, através do Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. Fomos convidados para participar do Projeto Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro e Circo e passaremos toda a semana em terras campo-grandenses. Ministraremos a oficina O Quadro de Antagônicos como instrumento de treinamento para o ator, participarei de uma mesa redonda sobre resistência teatral em tempos de crise e encerraremos nossa participação com uma apresentação do espetáculo Velhos caem do céu como canivetes.
Nosso trabalho no decorrer da última década se pautou no compromisso com o fortalecimento do teatro de grupo, na seriedade com que encaramos nossos projetos artísticos, e na honestidade que apresentaram nossos resultados. O curioso do convite é que saímos de Campo Grande com a certeza de que tínhamos feito um trabalho significativo e contribuído, de alguma maneira, para o fortalecimento da cena teatral local. Foi uma sensação coletiva, pois, ao deixar a cidade, os quatro sentiram que se efetivara a troca; e tudo o que o teatro opera, naquele momento, fazia muito sentido para nós. Mas, como toda certeza é uma dúvida em forma de esperança, o chamado da Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul serviu para confirmar o efeito da nossa passagem, e para propiciar um novo momento para a troca de experiências.
Dos encontros improváveis que a arte proporciona, Campo Grande receberá, em menos de um ano, os dois espetáculos do nosso repertório, as duas oficinas basilares da nossa construção cênica, e pílulas das reflexões que o blog da Pequena Companhia de Teatro procura provocar (assim como a oficina que facilitarei em Natal, a mesa redonda citada acima é outra atividade provocada pelo teimoso exercício de ancorar o pensamento aqui), criando o ambiente oportuno para que a comunidade local estabeleça um contato direto com a formatação do nosso grupo, os mecanismos de encenação, nosso posicionamento político, os meios de financiamento, nossas opções estéticas, os métodos para suportar a fome, os caminhos de treinamento para o ator etc. Apesar do permanente e profícuo atravessamento geográfico que os grupos de teatro brasileiros efetivam anualmente, não é comum uma cidade ter contato pleno com todo o fazer teatral de um coletivo, por isso defendemos e aplicamos, quando possível, o conceito de ocupação alargada, já realizado em Sousa/PB, Goiânia/GO, Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e, em julho próximo, Fortaleza/CE, quando ocuparemos o CCBNB durante duas semanas com a maioria das nossas atividades artísticas.
Claro que a atual conjuntura político-brasileira, e o conceito derivado dessa para as políticas público-culturais – que atende pela alcunha de desmonte – compromete, significativamente, nosso projeto artístico, pois, sem um olhar sensível do poder público, qualquer iniciativa passa a ser regida pelo canibalismo do mercado e nessa seara somo meros cordeirinhos. Portanto, inciativas como a da prefeitura de Campo Grande, focada em propiciar a fruição teatral para sua comunidade, também contribui para a resistência do teatro de grupo, ao promover uma mostra teatral, quando a nova ordem sugere que artistas devem pensar em arrumar trabalho – leia o contraponto que fiz aqui a esse chiste de mau gosto.
A atenta leitora, o cuidadoso leitor, já devem ter percebido o quanto a palavra resistência tem se repetido neste nosso muro das revoluções. Essa reiteração ocorre porque – mesmo que você não saiba, e que nenhum meio de comunicação divulgue – o teatro de grupo do país, e a arte de um modo geral, vem sofrendo uma profunda desconstrução estrutural, surda, capciosa, corrosiva, e a principal arma de que dispomos para o enfrentamento é a resistência. Resistindo vamos, teatralizando, de volta a Campo Grande.