A curadoria do contemporâneo

Na contramão, enquanto o Brasil teatral se encontra em São Paulo, acompanhando o mais badalado festival internacional do país – a MITsp, estou no Rio, acompanhando o mais badalado aniversário de criança – o do meu afilhado. A coincidência apenas serve de introdutório para o comentário genérico ao qual me dedicarei nesta postagem, pois nunca acompanhei a MITsp, e invejo todos os queridos amigos que de lá me mandaram maravilhosas notícias.
Qual é a nossa autonomia criativa quando inseridos em um contexto predominante?
Tenho a impressão de que se não seguir certas tendências, uma obra de arte – e a partir de agora me concentro em peças de teatro, nosso objeto de experimentação –, por mais robusta e contundente que seja, não conseguirá estar na linha curatorial da sua contemporaneidade. Essa condição velada influencia significativamente grande parte da produção teatral, e com isso, cria-se uma espécie de retroalimentação da mesmice, multiplicação de imagem a partir de espelhos paralelos, afetando a condição espetacular do evento teatral. Nesses casos, a espetacularidade consiste na qualidade criativa das variações sobre o mesmo tema – e uso a palavra “tema” como universal, podendo ser estética, conceito, momento político, técnica etc. Avalio se não seria pouco para uma busca mais apropriada da verdade artística, essa fantasia romântica que paira sobre alguns de nós.
Se o grupo, obra ou artista tentar seguir um caminho autônomo, independente, ou descolado do atual preponderante – apesar de ser consciente que a influência do entorno é indissociável –, pagará o ônus supracitado, e terá dificuldade de penetração, provocando naturalmente uma reavaliação da própria obra, fragilizando o entendimento de suas escolhas.
Conversando com um amigo encenador, pensávamos se não seria fácil o exercício de concentrar diversos clichês de específica contemporaneidade, e reproduzir o engodo com verossimilhança. Em outro momento correu uma lista de lugares-comuns necessários para se conceber um espetáculo contemporâneo – confesso meu espanto quando identifiquei vários em espetáculos nossos. Esses pequenos momentos de espelhamento – perdoem o abuso de espelhos, é que estou adaptando Borges – denotam o descompasso que sentimos, mesmo sem perceber, ao nos depararmos com as amarras do tempo, nosso tempo, e reivindicarmos para nós uma autenticidade desgastada de tão usada.
Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, e muito menos ao inferno – também tenho estado místico nestas últimas postagens. Não conseguiremos sair da influência do entorno, é certo, mas não precisamos ficar reféns dele, nem preconceber um diálogo que só se verificará a partir da honestidade da obra e da coincidência do diálogo desta com algumas urgências do momento em que ela é posta.
Claro que todo meu discurso é sempre carregado de certo romantismo; estruturado em ideias de originalidade, inovação, autonomia; porém, mesmo sendo conhecedor da falência dessas utopias, não me incomodo em assumi-las, tomá-las como meta, e parecer tolo e antigo perante os meus pares – sabedores de que tudo já foi feito, dito, criado, e que só nos cabe variar sobre suas formas.
Paciência. Acredito que não é possível viver artisticamente reproduzindo os mesmos caminhos apontados pelos cânones ou detentores do poder. Isso nos tornaria mais servis e menos artistas, e um teatro servil é mais nocivo que a ausência. De fato, quão servil estamos nos tornando ao forçar um diálogo como o contemporâneo? Nossa autonomia está preservada no dizer, ou penso no dizer a partir das modelações do entorno? Refaço a postagem fragmentada e a reformulo nos moldes aos que o leitor está acostumado a ler? Sou artista ou mentiroso?
Questões. Questão. Questã. Quão independente se pode ser, quando se depende da aceitação para a viabilização? Quão corrompida está a criação da Pequena Companhia de Teatro se se mantém presente no circuito da sua contemporaneidade? Quão sincero deve ser um escritor ao expor suas angústias? Minha opinião é formatada e desconfigurada dia após dia, por isso pergunto tanto.
O ideal seria que minha inquietude fosse exagerada e as perguntas fossem retóricas, pois acredito nas honestidades dos atores, conheço a maioria dos curadores do país, e me surpreendo com a generosidade de alguns amigos envolvidos nos mais diversos festivais, projetos, espaços, editais, ocupações – aqueles ambientes onde se definem os caminhos do teatro do pais. Todavia, não me canso de questionar. Quando vejo algo demasiadamente bom, que me agrada, que me entusiasma profundamente, é aí que procuro afinar o olhar, distanciar o envolvimento, e advogar para o diabo – como disse, estou místico. É o que tento fazer aqui.
Penso no quão plural é possível ser para não esterilizar iniciativas. Penso no quanto é necessária a ideia de recorte, contudo, no quanto de sangue corre a partir de um esquartejamento. Penso em sermos responsáveis pela superestimação de algumas funções e pela subestimação de outra. Penso que, como a Pequena Companhia de Teatro também é banhada pela luz desses mesmos holofotes, eu não deveria escrever nada disso. Penso na irresponsabilidade da minha postagem, ao escrever sem dados, pesquisas, estudos, levantamentos, estatísticas. Penso que se eu me levasse tão a sério não teria escrito a primeira linha deste blog. A minha única certeza é que, como diria o filósofo, todo penso é torto.

Sobre festivais, festas, FestLuso e festejos

De 22 a 28 de agosto passado acompanhei a totalidade do FestLuso – Festival de Teatro Lusófono, em Teresina/PI, e participei da 5ª edição do NORTEA – Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste como expositor na mesa redonda “Teatro brasileiro de expressão nordestina: realidades, desafios e perspectivas”, além de dialogar através de demonstrações técnicas, encontro de diretores lusófonos, colóquios, conferências etc. Foi uma semana intensa, provocativa, afetiva.

A querida leitora, o caro leitor, sabem que toda experiência artística me provoca reflexões. No caso, lanço o olhar sobre os festivais, seus objetivos, desafios e padeceres, a partir de um exemplo singular, um encontro que se propõe a reunir todos os países de língua lusófona através do teatro – no caso da edição 2016, Brasil (Piauí, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro), Portugal, Cabo Verde, Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

A primeira angústia emerge do enlace da realidade do FestLuso com a grande maioria dos festivais de teatro brasileiros: a falta de apoio continuado, tornando a edição seguinte uma mescla de sonho, desafio e abnegação. Com raríssimas exceções, todo festival brasileiro que se finda vive o dilema de não fazer ideia de como promoverá o vindouro, fator de comprometimento agudo no que tange à qualidade da programação, ao recorte curatorial, aos provocadores convidados, e a todo o entretecido que forma um festival de qualidade. É fácil colocar o olhar crítico durante, quando não se conhece o período de pré-produção dispensado possível, tendo em vista que algumas experiências chegam ao lançamento com promessas políticas e conta vazia.

Outro apontamento é quanto ao principal equipamento teatral da cidade, o Teatro 4 de Setembro, palco central da mostra lusófona e que, por coincidência, nos recebeu na semana anterior para a apresentação de Velhos caem do céu como canivetes, pelo SESC Amazônia das Artes. É urgente remediar o problema acústico provocado pela instalação de um número inimaginável de spliters em substituição à central de ar-condicionado anterior. Se a casa já não era de uma acústica impecável – apresentamos “Ramanda e Rudá”, em 1999 – agora transformou-se em um sumidouro de vozes, e nada que seja dito no palco consegue se ouvir se você estiver a partir da quinta fileira da plateia.

Observados esses dois problemas que perpassaram toda a mostra, ressalvo alguns pontos que valem a reflexão crítica, e me provocam como convidado e permanente colaborador deste querido festival. Quanto à necessidade de haver um recorte curatorial específico – neste ano versou sobre a negritude e suas ramificações – o comentário atento de Jorge Choairy ao ouvir meus relatos deu o tom da provocação: o ser lusófono já não é um recorte significativo como para somar recortes específicos? É uma questão que penso que valha ser analisada, sob pena de inviabilizar uma produção potente.

Certamente, a diferença mais significativa em relação às edições anteriores que acompanhei, foi a realização do NORTEA, deslocada sua 5ª edição do FILTE Bahia – Festival Latino-americano de Teatro da Bahia para o FestLuso. Se nos anos anteriores era reservada uma manhã para o encontro de diretores lusófonos, este ano todo o período matutino do festival dedicou importante espaço para a problematização do teatro, seu fazer e dizeres. Um diálogo intenso foi travado durante toda a jornada, oxigenando a mostra e ampliando seu alcance reflexivo. Penso que uma maior presença deveria ser cobrada dos grupos participantes em todas as atividades formativas e reflexivas, como contrapartida ao esforço da organização em viabilizar o intercâmbio. Essa participação auxiliaria no mapeamento dos grupos, suas estruturas e formas de manutenção artística.

Quanto à mostra propriamente dita, o recorte lusofônico promove um desnivelamento qualitativo significativo, fazendo o espectador transitar por estéticas e linguagens atípicas, ora seja por contingenciamento econômico evidente, ora pela peculiaridade da construção desenvolvida naquele país. No geral, percebe-se que há um esforço conjunto, por parte da produção e dos grupos convidados, para conseguir manter de pé uma proposta tão autêntica e tão na contramão do mercado cultural; e estendê-la para todo o estado, pois a mostra se ramifica por outros municípios do Piauí, alargando o alcance dos recursos públicos envolvidos.

O encerramento da programação de cada dia acontecia no espaço Trilhos. O encontro dava o tom afetivo que o festival propõe. Toda noite, músicos dos mais diversos estilos, desfilavam seus sons para uma plateia feita de pessoas de todas as artes. Movimentos, conversas, performances espontâneas, discursos, improvisos, integravam realidades de países tão distintos ligados pela língua, em alguns casos, literalmente.

Foi uma experiência deliciosa e exaustiva (me propus acompanhar todos os espetáculos da mostra e todas as atividades reflexivas, tornando a rotina diária uma jornada que começava às 9h e terminava às 3h.), e em cada momento, em cada canto, em cada diálogo a certeza da potência que encontros artísticos dessa natureza têm para ajudar a confrontar momentos tão duros como os que estamos enfrentando atualmente. Os afetos envolvidos também me tornam suspeito, mas quero acreditar que, ao enfrentar um desafio tão instigante quanto o FestLuso oferece, todos os envolvidos – organizadores, artistas e voluntários – estão empenhados em superar-se, ano após ano, na busca de produzir o melhor festival possível para a comunidade piauiense.  

Asas sobre o exílio, em forma e pensamento

Fotos de Ayrton Valle
Por Kil Abreu*, em São Luís. 

Ao assistir ao espetáculo da maranhense Pequena Companhia de Teatro e ao olhar o entorno onde ela se inspira, a impressão imediata é a de que a escolha dos materiais e as operações de linguagem sobre eles como que criam um parangolé dramático talhado à medida pra vesti-los. O conto de Gabriel Garcia Marquez (Um senhor muito velho com suas asas enormes) oferece o tecido, a matéria primeira, mas a montagem é fruto de motivos, modelos e técnicas intuídas pelo próprio grupo, de modo que mesmo estando lá, e bem assimilada, a narrativa original dá lugar a uma obra nova, em boa medida autônoma quanto aos seus argumentos.

O ser alado que cai no terreiro, um anjo velho (mas imprestável para a metafísica), é parente mais novo do faquir de Kafka (Um artista da fome), e dele empresta senão o mesmo destino ao menos a trajetória. Como aquele, é criatura marcada por uma diferença fundamental, fora do raio da compreensão ordinária (as asas, a origem ignorada, a sobrevivência na contingência).

Na versão do encenador Marcelo Flecha esta incongruência viva é acolhida por um miserável, um catador de lixo. E daqui desdobra-se já o procedimento fundamental que dá ossatura à dramaturgia: o anjo, que no conto do autor colombiano não diz palavra, aqui não só faz as réplicas ao outro como também cria o espaço para um diálogo político-existencial capaz de instaurar questões novas e de fazer as aproximações que o grupo quer explorar tendo como medida sua própria realidade.

“E a consciência destes seres exilados, quando trágica, tem a ver com o atravessamento da liberdade pela certeza da finitude tanto quanto pela certeza sobre uma vida insuficiente”

Ao ceticismo e pessimismo de quem a seiva das idealizações diante do mundo parece ter sido toda extraída correspondem as provocações do outro, expressas em uma espécie de fé paradoxal – porque instaurada não através da crença ou do dogma, mas através da dúvida e de perguntas sobre o sentido do existir. Então, de García Márquez a Kafka e de Kafka ao próprio grupo os caminhos tendem a encurtar-se. É que em qualquer caso o que margeia, acidentalmente ou não, todas estas narrativas – inclusive a atual, proposta pela Pequena Companhia – é a discussão da liberdade como lugar problemático para onde convergem os enfrentamentos entre miséria e transcendência, entre rotina e maravilhamento (para lembrar a ótima expressão citada pela Beth Néspoli), entre enquadramento e possibilidades de criação.

Os pontos de vista das personagens, por opostos que pareçam, se afunilam e se irmanam em uma condição semelhante. Esta condição é a do exilado (a própria diferença, na própria história ou no próprio lugar). E a consciência destes seres exilados, quando trágica, tem a ver com o atravessamento da liberdade pela certeza da finitude tanto quanto pela certeza sobre uma vida insuficiente. Consciência do abandono de Deus tanto quanto da instalação de um mal terreno, que parece injusto e irrevogável. Por isso a perspectiva de pertencimento é inócua, não faz diferença ao homem que não sonha.

Partindo deste plano de pensamento, tão irrevogavelmente niilista do início ao fim, a Pequena Companhia o desenvolve, no entanto, através de uma dialética bem sustentada e cheia de nuances. E faz dela o campo, o solo fértil para um teatro provocativo. A colheita é de qualidade. A dramaturgia alinhavada por Marcelo Flecha traz um jogo cuidadoso e fundo entre as réplicas. Cuidadoso no aspecto que mais interessa a uma arte da síntese como o teatro: o diálogo entre os personagens não deixa sobras, tudo se aproveita. É ótimo alicerce para a cena. As falas são inteligentes não porque complexas, mas porque na aparente objetividade conseguem instaurar questões que permanecem astuciosamente abertas, à espera das nossas (plateia) colaborações íntimas para que se arredondem. Ao mesmo tempo trazem o desacordo necessário para fazer com que as posições em jogo se movimentem de um ponto a outro, no sentido da argumentação. O resultado é tão bom que o contraste fica evidente nos poucos momentos em que uma ou outra ideia parece fugir ao universo das personagens, expressando a voz do autor lateralmente ao conflito que está em andamento.

No plano visual do espetáculo luz, cenário e atuações ordenam-se em um mesmo movimento orgânico.  Sob o argumento de que o agora catador de latinhas tenha sido em algum momento da vida um artista plástico cria-se não só o espaço para a discussão sobre a natureza e função da arte como também uma ambientação em que os objetos são tão úteis quanto altamente simbólicos.  E assim o plano particular da fábula faz a liga com o contexto social e estético em que ela é agora atualizada. Por exemplo, há uma significativa instalação com latas de Guaraná Jesus fazendo as vezes da coluna central de sustentação do casebre; crucifixos estilizados servem de lenha em um fogareiro no qual não há chamas, só luz. São desdobramentos do plano cenográfico que cavam aqui e ali aberturas para novos sentidos, a refazerem os significados do texto de García Márquez, colocando-o a serviço de imaginário e circunstâncias locais.

O quadro plástico se completa no trabalho dos atores (Jorge Choairy e Claudio Marconcine). É quando se pode colocar em perspectiva a história recente do grupo e dizer que esta montagem de agora reafirma, com excelência, o rigor já apontado em Pai e filho, o espetáculo anterior. São atuações ‘construtivas’, decididamente erguidas no trabalho minucioso da estilização dos gestos e das vozes, por fora de qualquer concepção maneirista. Sem se deixar afundar no formalismo, a criação dos dois intérpretes inventa humanidades complexas, em composições bem cortadas, postas a serviço de uma dinâmica viva em sons, ritmos e deslocamentos que se totalizam em um conjunto límpido quanto aos sentidos.

Se cruzarmos obra e contexto a impressão que se tem – após observar minimamente as circunstâncias possíveis para o fazer teatral em São Luis do Maranhão – é de que a Pequena Companhia vem traçando uma trajetória por fora da ordem dada. A tomar por este Velhos caem do céu como canivetes, trata-se de um milagre criativo, o que certamente não dispensa o trabalho e o esforço, visíveis na fatura final do espetáculo. É um trabalho maduro quanto ao resultado artístico tanto quanto no equilíbrio justo, difícil de alcançar, entre forma e pensamento. De alguma maneira o grupo corrige com potência, nos seus modos próprios, as condições nem sempre favoráveis para que se mantenha de pé um teatro vivo.
 
*Jornalista, crítico e pesquisador do teatro pós-graduado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Foi crítico do jornal Folha de S.Paulo e da revista Bravo! Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura/SP (2003/2004), onde gerenciou alguns dos principais programas artísticos da cidade, como o Formação de Público e o Programa Municipal de Fomento ao Teatro. Foi curador dos festivais de Curitiba, Recife e Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. Por dez anos foi professor e coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André e por oito jurado do Prêmio Shell/SP. É membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), curador no Centro Cultural São Paulo, e colaborador do Teatrojornal.  Mantém estudos sobre dramaturgia e teatro brasileiro contemporâneo.