Afetos como antenas de comunicação

Desde ontem aportamos em Mossoró, após concluirmos a ocupação do Centro Cultural BNB de Fortaleza, durante as últimas duas semanas. A partir de agora cumpriremos uma jornada afetiva, que preambulei na postagem Antenas para os afetos e que agora desenvolvo. Estamos com a oficina sobre o  Quadro de Antagônicos, ontem e hoje; apresentaremos Velhos caem do céu como canivetes, na terça, 19h30, no Teatro Municipal Dix-Huit Rosado, e na quinta, 20h, nos apresentaremos em Natal, no barracão dos Clowns.
Como venho ressaltando em quase todas as últimas postagens deste blog, o futuro do teatro de grupo no país está fadado a retroceder trinta anos, capitaneado por um desmonte estrutural e um desmanche sistemático de tudo aquilo que o Ministério da Cultura se tornou na última década; obrigando os grupos a desenvolver estratégias outras para garantir a sua produção artística, fundamental para a sobrevivência do pensamento autônomo brasileiro.
Uma das apostas da Pequena Companhia de Teatro para confrontar essa perversa realidades são os afetos. Explico: nossa ocupação em Fortaleza foi patrocinada pelo BNB, por consequência, o maior custo de produção já está pago, que compreende o deslocamento da equipe e cenário, e na atual conjuntura, a possibilidade desse mesmo espetáculo se apresentar em Mossoró e Natal é mínima. Como temos uma enorme relação com essas cidades, e achamos fundamental que conheçam esse trabalho, resolvemos abrir mão de um cachê mínimo por apresentação e estender nossa jornada até as duas cidades, no peito e na raça, sabendo que, por logística de espaço e número de apresentações, não teremos nenhum tipo de retorno financeiro, a não ser para pagar os custos; vamos porque queremos que essas cidades vejam o espetáculo; faremos isso por afeto.
Da mesma maneira, e principalmente, quem nos recebe aporta com uma parcela incomensurável de afeto, concentrada na Cia. A Máscara de Teatro – com o apoio da prefeitura, e diversos outros parceiros –, em Mossoró, e nos Clowns de Shakespeare, Arlindo Bezerra e Chrystian Saboya, em Natal. Ou seja, uma soma de afetos provindos dos mais recônditos labirintos das nossas amizades possibilitará que as comunidades de Mossoró e Natal assistam a um espetáculo que não chegaria a elas se dependesse de políticas públicas para a circulação do pensamento dos grupos de teatro de pesquisa pelo país – instrumento basilar para a formação de cidadania e para a materialização identitária do ser brasileiro. 

São estratégias heterodoxas, táticas de guerrilha, maluquice de artista, nada ideal, nada leves, mas necessárias para confrontar uma realidade que busca aniquilar o nosso pensamento e as nossas ações. Enquanto um pensamento comum que contemple o teatro de grupo de todo o país não emergir, vamos executando pequena ações, trilhando novos caminhos, pensando em como marcar nossa realidade com a resistência que nos identifica; e o nosso primeiro e principal instrumento para isso é o afeto.
Ver o esforço descomunal da Cia. A Máscara de Teatro para que a empreitada seja possível faz valer cada gota de suor do nosso esforço e cada centavo perdido, pois é bom que se enfatize que tanto nós quanto cada um dos nossos parceiros nesta maluca campanha estão trabalhando praticamente de graça – e uso a Máscara como exemplo de todos os outros queridos amigos que tornaram viável a nossa ida. Fazemos porque acreditamos que o rastro deixado por nossas ações fertiliza o solo árido de hoje, preparando uma colheita digna para os que virão. 

São essas lógicas excêntricas que precisam ser praticadas pelos grupos do país na busca de formatar estratégias fora da curva, que possibilitem a nossa caminhada até atravessar o tenebroso inverno que o país vive. Os longos papos com o Nelson, do Pavilhão da Magnólia – grupo querido que não mediu esforços e nos brindou com um caminhão de afetividade em Fortaleza, tornando nossa estada viva e pulsante – convergiram para esse pensamento: precisamos uns dos outros, muito além das estruturas mercadológicas que o sistema tenta impor para um setor tão efêmero e imaterial quanto o teatro. 
Afetos. Antenas para os afetos. Vale a pena carregar o peso dos cases, enlonar o reboque e dirigir por horas a fio se nos recebem os braços abertos dos nossos queridos amigos. Vale o esforço, vale o cansaço, vale o foco na desambição; vale a pena saber que estamos fazendo a nossa parte, contribuindo com um grãozinho de areia para que este país seja um pouco menos capital e um pouco mais humano.

Acordei de bom humor após sonhos intranquilos

Hoje faço um bate-e-volta para o Rio de Janeiro, participar de um debate sobre o SESC Dramaturgias, que será transmitido amanhã, às 14h30, por videoconferência para todo o país, pois na terça, bem cedinho, pego o volante da Pequena Móvel, e rumaremos para Fortaleza cumprir com a nossa agenda de ocupação do CCBNB destrinchada nesta postagem aqui.
Como vamos bater um papo sobre a experiência em participar do projeto a partir da oficina de escrita dramatúrgica que ministrei em Caxias/MA, Vitória/ES e Maceió/AL, antecipo o meu balanço para instrumentalizar os queridos leitores que por ventura vierem a acompanhar o debate em alguma das unidades regionais do SESC para onde a videoconferência será transmitida. 
Assentarei a provocação naquilo que motivou minha proposta para o SESC e que vem sendo discutida aqui no blog: o excesso de narrativização do teatro contemporâneo. Esse assunto pontuou permanentemente o diálogo com as pessoas que participaram das oficinas, e gerou uma inquietação quanto à necessidade de discutir o fato e entender o que esse sintoma da contemporaneidade tenta nos dizer. Como penso que será necessário me debruçar em outra postagem sobre o assunto após ruminar a colheita das réplicas e tréplicas que recebi, não aprofundarei esse mote hoje; todavia, o conteúdo da problematização está escondido na palavrinha que aparece em vermelho neste parágrafo, é só clicar para abrir a Caixa de Pandora.
Debruçar-me-ei sobre quatro pontos que considero cruciais na experiência vivida, dois negativos e dois positivos. Começarei pelos negativos, para dar tempo de diluir meu azedume, fazendo com que o ledor termine a leitura com uma imagem menos ranzinza deste ranheta contumaz que tanto reclama.
O primeiro ponto negativo é que meu Henrique é sem H… Era para ser uma piada; se você não riu, é a prova patente de que você é tão ranheta quanto eu. O segundo, e aqui ressalvo abordar o tema em termos gerais, não sendo generosos com as situações que fugiram à regra, percebi uma dificuldade do SESC em conseguir adequar a clientela da oficina para o recorte mais específico sugerido pela oferta, desnivelando a possibilidade de aproveitamento por parte das pessoas atendidas pela ação; fiquei com a sensação de que pessoas outras, que respondessem mais organicamente às especificidades, pudessem ter ficado de fora não por indiferença, por desaviso.
Já os pontos positivos foram apenas confirmados, pois haviam sido levantados como suspeitas em postagens anteriores que nem vou lincar, por saber que você não se dará o trabalho de clicar. O primeiro diz respeito ao cuidado do SESC em viabilizar uma carga horária significativa, 32h – tendo em vista que uma disciplina acadêmica gira entre 40 e 60 horas, disponibilizar uma atividade formativa com essa extensão comprova o compromisso do SESC com o aprofundamento do estudo das múltiplas dramaturgias postas hoje. Não é muito comum atividades formativas receberem essa atenção quanto ao tempo necessário para que uma facilitação seja realizada largamente, possibilitando ao participante um debruçar-se efetivo, contrapondo-se a certa superficialidade que permeia projetos que incluem formação, inclusive nossos.
A segunda, e que a edição deste ano traz como novidade, é a possibilidade de a oficina ser ministrada em dois momentos, com um intervalo de tempo importante entre os dois. Esse acertado formato possibilitou o confronto entre teoria e prática. Aquilo que fora postulado no primeiro encontro, recebera um outro momento para a verificação das postulações no tête-à-tête com o postulante, arremessando oficineiros e oficinados em um delicioso jogo dialético, repleto de comprovações, antíteses, problemas, réplicas, contradições, esclarecimentos, teses, tréplicas, abraçados pelo empenho na busca da síntese, tão esquecida nas tratativas dialéticas contemporâneas, principalmente virtuais.
No trinchinchim, minha experiência aponta para algo que vem sendo pontuado por onde passo, nas quase setenta cidades que visitei nos últimos anos com diversos projetos: o fato de o SESC ser um ocupador potente da lacuna que as políticas públicas culturais do país não conseguiram preencher, e que agora, na atual conjuntura política de desmonte e desmanche, será alargada até virar uma grande vala onde será sepultada a cultura brasileira.
São apenas umas pitadas de tempero que jogo por cima, para marinar o papo que acontecerá amanhã, e que você poderá acompanhar, se tiver disposição para dar um pulinho na unidade do SESC da cidade que você habita. Como frequentemente faço jejum, chegarei para o debate com fome, e espero que as questões levantadas por você, meu intrépido leitor fantasma, saciem este faminto prosador de inutilidades.