Como montar um espetáculo em tempos de crise?

Como sempre. Como todo grupo de teatro brasileiro fez nestes últimos trinta anos em que me entendo por teatreiro. Sem dinheiro, sem apoio, sem aceno, sem visibilidade, sem holofotes, sem marqueteiro, sem diploma, sem lenço, sem documento, sem perspectiva, sem futuro. Com vigor, com vontade, com tesão, com afeto, com empenho, com afinco, com humor, com desejo, com responsabilidade, com sobriedade, com corpo, com sangue, com sonhos, com utopia.

Ensaio sobre a memória é o nosso projeto de vida atual. É o que queremos e precisamos fazer, independentemente das condições dadas – ou surrupiadas – para a sua execução. É a nossa necessidade. É o que o nosso comprometimento demanda. É o grito que precisamos dar para não sermos omissos no momento em que o país mais precisa do teatro de grupo. Como podemos perder a memória assim? Como a nossa falta de memória pode ter nos levado a isto que estamos vivendo? Como diria uma personagem da nossa peça: “Entendo que nossa carne não tem a fibra que devia ter… estamos todos adormecidos, uma espécie de letargia mórbida que nos faz aceitar tudo… não há um mínimo de resistência”. Como a memória pode ser tão frágil ao ponto de padecerem as lembranças mais atrozes que a humanidade conseguiu produzir?

É o que estamos tentando entender. O que é memória? O que é história? O que estamos fazendo com o nosso passado? O que sabemos do nosso passado? Por que a memória insiste em se esconder quando o país mais precisa dela? Sabemos o que fazer: resistir, combater, anarquizar, questionar, surpreender, assaltar. O teatro de grupo sempre soube o que fazer, e nunca se escorou na falta de recursos para calar um grito, pois crise para o teatro de grupo neste país sempre foi rotina. Sabe como a Pequena está fazendo? No peito. Não me perguntem como, não me perguntem o porquê, só posso dizer que fazemos porque é necessário.

Sempre acreditei nisso, no nosso poder de resistência. Mesmo agora, quando a nossa montagem recebe um golpe grave, agudo, resistimos; nos readaptamos, nos reconstruímos, nos regeneramos; nos reconhecemos vivos, pulsantes, combativos; dispostos a erguer a voz da memória, a combater a distopia, a revisitar os percalços da história, a passear pelo cambaleio do passado para tentar entender o titubeio do presente – é que teatro de grupo é de outra natureza; quanto mais nos podam, mais crescemos.

A solução está em lançar mão de velhas formas e tentar formatar caminhos menos ortodoxos. Alargar as parcerias, intensificar o diálogo, refletir sobre as ocorrências do passado, dissociar da prática a possível letargia gerada pelas intempéries – Cláudio tem transitado bem por esse pensamento nas últimas postagens. Um novo espetáculo se constrói do que pulsa no seu entorno sócio-político-cultural, mesmo que o seu dizer esteja descolado na sua temática. Não é o nosso caso, pois a temática abordada pelo destino de Pedro Damián dialoga diretamente com a atual conjuntura; mas também tentamos incorporar essa atmosfera na busca da potência pulsante que as agruras de uma realidade jamais esperada nos apresenta, e conduzimos nossa prática para além do universo ficcional, capilarizando na montagem as estratégicas que a nova ordem nos impõe.

O caminho mais acorde com a nova realidade é a guerrilha. Valer-se das táticas de guerrilha para a montagem, para a divulgação, a repercussão, para o financiamento, para a manutenção. Agora estamos sós. Não se espere nada do poder público federal. Muda o rumo. Remontar práticas passadas – passamos por tudo isso inúmeras vezes – e invencionar práticas futuras. Agora, mais do que nunca, recupero uma das postagens de maior repercussão deste blog: Entretecendo a teia da revolução.

Em outra postagem perdida no limbo cibernético eu imaginava a pergunta solidária da fiel leitora e do cruel leitor: o que eu, do meu lugar de plateia, posso fazer pelo fortalecimento do teatro de grupo brasileiro num tempo de crise como esse? Hoje, mais do que nunca, suas possiblidades são inúmeras. Se não achar uma única resposta, me provoque, pois pode ser o tema da minha próxima postagem.

 

faca de dois legumes



em época de vacas magras, a ideia de transitar pelas contradições é tábua de salvação para o fazer cultural-artísticono maranhão, um estado que privilegia os grandes eventos e desconstrói a participação da comunidade em criar sua arte, dar vazão à sua subjetividade. sem recursos e estímulos torna-se inviável querer gestar cultura.
se falarmos na prefeitura municipal de são luís, a prática se alinha e se afina com a do estado do maranhão. o governo federal inexiste desde o golpe que tirou dilma roussef da presidência e pelo andar da carruagem o futuro que nos aguarda é aterrador.
com a frequente e continuada ausência do poder público viabilizando o fazer artístico-cultural, as práticas e os olhos se voltaram para a iniciativa privada como sesc, sesi, o boticário, itau, valle do rio doce e uma dezena de instituições que são, de alguma forma, subsidiadas com recursos públicos, quer proveniente da arrecadação do governo e posterior repasse, por meio de contribuições que as empresas são obrigadas a pagar sobre o valor da sua folha de pagamento, quer pela lei da renúncia fiscal, em que as empresas, através de suas fundações, determinam onde disporão seus recursos, arbitrando suas programações.
quando nos aceitamos e nos reconhecemos sobreviventesnaartee, na atual conjuntura, não nos predispusermos à esfera da contradição, não conseguiremos elaborar o pensamento para nos encaixarmos (esse é o termo adequado) nos parâmetros estabelecidos pela iniciativa privada. o discurso de pensar na obrigatoriedade do estado (no sentido de nação) como agente subsidiador de práticas artísticas, pede passagem para aceitar a interferência da iniciativa privada em atribuir valor à sua obra. mediado pelo estado a perspectiva se restringia a valores, geografia e linguagem. não se atribuía valor estético nem político à obra como fator de seleção.
o diálogo estabelecido nessa reflexão parte do pressuposto que, mesmo sendo entidades privadas (em alguns casos são paraestatais), os recursos destinados às suas ações são públicos.
nossa prática só se efetivará se repensarmos nosso processo, nossas angústias. não sairemos ilesos dessa reflexão. mas, precisamos repensar nossa função enquanto artistas ou enquanto padeiros, copeiros, serventes. a época dos editais públicos deixou de existir. a ideia de sobreviver sem mudar nosso discurso e nossa prática não tem mais espaço. se não nos pluralizarmos, deixaremos de ser profissionais na artepara sermos outra coisa – qualquer coisa – para sobrevivermos em uma sociedade que pensa diferente da gente a ponto de não nos quererem mais. estamos morrendo aos poucos. nossa sobriedade se esgota para dar lugar ao delírio de quem passa fome buscando uma migalha de pão para o jantar, vendo sua dignidade de esvair como areia entre os dedos.

miserere

a chatice virou prima-irmã da incerteza e da insegurança, e nestes dias de dúvidas, tudo é reconfigurado numa fração de segundos: nosso voto nunca foi tão incerto.


miséria. miséria. o mundo que você me traz é uma miséria. 
você não pode me culpar por ter tentado evitar toda essa miséria, diz a personagem.


sempre nos arvoramos em dizer que fazemos só teatro e que vivemos financeiramente dele. desde o golpe que tirou a presidenta dilma, legitimamente escolhida pelo voto direto, as artes vêm sofrendo um desmonte em suas políticas de financiamento e fortalecimento dos segmentos, através da inexistência de editais públicos e de ações efetivas do ministério da cultura. mobilização e o ministério é preservado. contudo, sem as garantias anteriormente implantadas pela gestão de lula e dilma. hashtags criadas, palavras de ordem aos borbotões, ocupações pelo país. alguma coisa mudou? insatisfações persistem no tempo e o abismo se precipita. eleições. quanto mais se fala, mais se solidifica. preguiça em ler sobre tudo – até sobre meu candidato.




entendo que nossa carne não tem a fibra que devia ter… 
estamos todos adormecidos, uma espécie de letargia mórbida que nos faz aceitar tudo… 
não há um mínimo de resistência…, diz a personagem.


e lá vem as manifestações antecedidas por mobilizações virtuais. caras-pintadas, cidades acionadas… e o tiro sai pela culatra. amplia-se a discussão, o rancor, o ódio.


esta semana tive uma experiência atípica. experimentei exercitar uma ação terrorista proposta dentro da programação do conexão dança e intervimos na rua grande. ouvi desaforos, incômodos desnecessários, nome de candidatos e partidos sendo associados à ação. não me causou desconforto o experimento, não é isso. porém, a reflexão que faço e questiono – não tenho respostas para quase nada – é que passo a crer que importa mais uma justificativa inócua de nossa incapacidade de propor e fazer mudanças através de atitudes contraproducentes.


preciso ler “zona autônoma temporária”, de hakim bey, sugerido pela princesa, para compreender melhor onde me encaixo, onde a arte se encontra, onde estarei depois das eleições, como sobreviverei. tudo é tão obscuro e latente, que escolher um candidato hoje não equivale a votar nele amanhã; que as propostas defendidas hoje não serão, necessariamente, as que serão postas em prática; começar ensaios de um novo espetáculo de teatro não quer dizer, necessariamente, estreá-lo dentro do previsto.


numa época de ânimos aflorados, de posicionamentos incisivos, cortantes, minha acidez e ironias acabaram por perder força. a modorrice impera no meu castelo de cartas. espero o passar das horas e a conjuntura astral melhorar para propor alguma coisa que, não só me tire dessa parvoíce, como também seja algo com um mínimo de dignidade de nota.