O Quadro de Antagônicos e a vida que segue

Dia primeiro de maio de 2019 estreia Ensaio sobre a memória, novo espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, com dramaturgia minha, a partir do conto La otra muerte, de Jorge Francisco Isidoro Luís Borges, com Tassia Dur, Katia Lopes, Lauande Aires e Cláudio Marconcine no elenco. Sem sombra de dúvida a montagem mais complexa, mais difícil, mais problemática, mais fragmentada, mais longa da trajetória da Pequena, e arrisco cravar, da minha carreira. De Velhos caem do céu como canivetes a este ensaio sobre os vaivéns da história e sua fraca memória, vão-se cinco anos e seis meses, o espaço mais longo entre montagens do nosso grupo, e arrisco… não, prefiro não arriscar; de riscos, já basta o teatro.
Ofício de riscos, mas nunca tão plenos quanto hoje. Esta não é uma montagem qualquer. Ela é construída de vazios, de ausências, de faltas, de angústias, de desalentos, de desânimos, de solidões, de borbotões, de borboletas, de botões, de tudo o que desanda e tudo o que confessa. É uma confissão para os novos tempos. É uma experiência desatada, uma garganta desenfreada, uma lacuna de confidências, uma desigualdade. É o diagnóstico do que se tem, a causa do que se provoca, e a cura do mal que não cabe em si. É dizer sim. Sim ao fazer, sim ao teatro, sim ao gesto, sim ao feto: nasça; ainda haverá teatro.
Esse meu preâmbulo rasgado, dilacerado, nada mais é do que um exórdio, um introito uma prefação: não diz nada. São só os acordes dos meus instrumentos de trabalho desafinados: o coração, o cérebro, o que resta deste corpo decrépito, e as mãos, que já não aguentam cortes, golpes, furos e ardores. Prelúdio para falar do que não quero falar: o impudor que um dizer pode ter no trato com métodos, formas, conceitos, procedimentos, amarras, gostos, gessos e estratégias.
Desde que esta montagem começou… minto, desde que o processo da dramaturgia fluiu, percebi que muito do que a Pequena Companhia de Teatro sedimentou como sendo seu patrimônio conceitual, seu arcabouço estruturante, não serviria para dar a retumbância poética e a potência que o nosso ensaio sobre uma memória historiada demandaria. O Quadro de Antagônicos, com seus procedimentos, rotinas e ritos, não seria aplicado com a disciplina, rigor e contundência que nossas encenações exigem, pois o instrumento não contemplava as demandas desta nova montagem.
Mas, como abrir mão de um trabalho, de uma pesquisa, de uma trajetória apenas pela necessidade de construir o ambiente necessário para um espetáculo? De onde extrair a coragem para usar o Quadro tangencialmente, perifericamente? Qual foi a minha surpresa ao constatar que a ruptura seria muito mais aguda do que o mais contemporâneo dos Marcelos Flechas poderia imaginar? Enquanto eu me digladiava com a ideia de abjurar um organismo que nos é tão caro, a cena já o havia feito sem a menor parcimônia, sem o menor constrangimento, sem a menor compostura. Me desconheço como encenador na montagem Ensaio sobre a memória. Não sei quem sou. Não sei que diretor fui. Não tenho registro de mim, do meu fazer. O ensaio me conduziu. Reformulei rotinas, diversas, no mesmo dia. Tudo foi tão urgente que me engoliu. Fui levado pelo grito da cena. Fui arrastado pela vicissitude dos milagres. Fui encorajado pela confiança no dito. Fui tragado pela agonia de correr o risco. Fui desabitado de mim, pela necessidade de pôr à mostra a falha terrível que pontua nosso presente: ser um país sem memória.
Mas este rompante, esta desconversa, pontua o principal imbróglio da não conversa que tento acentuar aqui: qual a dose de oxigenação certa para práticas acertadas, métodos estruturados, sistematizações pragmáticas? Não é mensurável para mim hoje, mas não sobrecarrego a ansiedade, já engordada pela própria natureza da fragilidade de quem lida com a criação artística. Sustenho a máxima que gera todo o meu fazer artístico desde que enveredei pela estéril arte do agora: tudo sempre está a reboque da obra de arte. É ela que demanda, que guia, que ordena, que exige, e por ela devemos sucumbir, surrupiar, abandonar, voltar, recorrer, surtar. Se a obra pede o exílio, exílio será. O desterro, desterrado. A clausura? Clausurado.
Contudo, essa extrusão, esse alvedrio, essa opção por abdicar do nosso método garante alguma coisa? Não. O que isso significa? Não sei. Talvez um espetáculo menor. Talvez um hiato, um interstício, uma terceira margem. Talvez uma desilusão para os puristas. Talvez mais um espetáculo honesto, feito por artistas honestos. Pouco importa. De certo, a seta: esse era o caminho a seguir, e ele urgia. Não titubeio quanto a essa opção, e por isso hoje falo em primeira pessoa, apesar de estar tratando do complexo experimento coletivo chamado teatro. Fui o responsável por essa opção, para espanto de alguns pares, conivência de mais de um, e decepção de outros.
Se esse spoiler – e você me vendia avelhantado e obsoleto – não te fizer correr para ser o primeiro da fila na estreia, parei contigo.

Contrariando a nova ordem

A Pequena Companhia de Teatro iniciou recentemente uma nova parceria, desta vez com a Cia. Prisma de Artes, de Fortaleza/CE, com o intuito de montar um espetáculo que reúna as urgências do coletivo cearense, com estreia prevista para o primeiro semestre de 2019.

Passamos uma semana em Fortaleza – momento capital para o atravessamento do pensamento e das práticas de cada grupo – atentos às demandas oriundas das aflições que compõem o quadro das nossas lutas, e afinados na percepção de estudar o melhor caminho para dar eco a elas.

Sinto que tudo está cada vez mais urgente. Teatro é ação. É movimento. Quanto mais um coletivo se move, se desloca, se transmuta, se reinventa, maior a pujança surgida. Quanto mais um grupo encena, maior a probabilidade de responder às urgências provenientes da contemporaneidade.

Nesse caminho, depois das preliminares discussões sobre o que dizer, motivado por alguns textos e gatilhos provocadores, mergulhamos num intenso exercício de experimentação, tentando fazer aflorar de maneira mais orgânica o compromisso do discurso com esse agora de que trato no parágrafo acima.

Atores em processo de experimentação se revelam, se entregam ao descompromisso com a lógica, se metamorfoseiam sem temer o ridículo, fazendo com que a verdade seja uma órbita pulsante em cada experimento. Como nosso caminho ainda não estava comprometido nem com forma ou conteúdo, o torvelinho de opões foi sendo desvelado, assegurando um repertório de alternativas interessantes, embaladas na atmosfera do contemporâneo, pela fragmentação do discurso, pelo descolamento com uma narrativa dramática, e pela amarga sensação de estarmos vivendo uma distopia.

Agora nos dedicamos ao encaminhamento mais organizado do dizer, estabelecendo metas e prazos para definirmos concentradamente as possibilidades levantadas, porque uma coisa é consensual entre a Prisma e a Pequena: a força do discurso é crucial para a saúde da encenação, tendo em vista que o comprometimento dos envolvidos depende exclusivamente da identificação destes com o objeto de pesquisa. É o momento em que não se pode titubear, pois toda a sequência do trabalho pode ficar comprometida se não houver clareza e confiança no dito, para que a defesa desse postulado se materialize na potência aplicada pelo grupo na construção da cena.

Somar ações, encontros, estratégias, parcerias, pensamentos e práticas é a forma que o teatro de grupo do país tem para enfrentar a nova ordem que se avizinha, certos da tragédia que assolará a cultura brasileira: quem fala em fundo do poço não sabe o que é profundidade.

Partes de mim

Semana passada estive em Mossoró, para a serenata surpresa e íntima, promovida pela “A Máscara”, e dirigida por Damásio Costa, para uma das minhas amigas mais queridas, a atriz Tony Silva. Aproveitando a ocasião, pudemos espremer o tempo e avançar nas discussões e procedimentos da próxima montagem do grupo, prevista para 2019, com direção minha, como você já sabe, pois leu aqui.

Nossa discussão, que se encaminhava para a adaptação do romance “A Polaquinha”, de Dalton Trevisan, sofreu um pequeno revés, e nos percebemos discutindo pertinência, contemporaneidade, desejos, oportunidades; definindo que será uma das nossas três montagens juntos, mas não necessariamente a primeira.

Esse titubeio oxigenou meu discernimento e alimentou o assunto da escrita semanal que me imponho aqui, e que tem sido motivo de análise severa quanto a efetiva necessidade da permanência do exercício, tendo a falta de frequência como aliada na argumentação para a suspensão do martírio de me revelar semanalmente. Inflamável, o conflito explodiu nas entranhas e sangrou, expondo as vísceras do teatro de grupo na contemporaneidade: o que dizer?

Minha tentativa hoje é discorrer sobre todas as influências que afetam uma opção orgânica de temática definida por um grupo e as consequências que essa ponderação possam infligir na obra de arte em questão.

Como sempre me apresento como vidraça, digo: a Mulher, personagem emblemática da nossa próxima montagem, foi vestida durante um período pela atriz Jyesse Ferreira, em um desempenho preciso que oferecia a representação exata que a personagem demandava. Somava-se a essa sorte, a imagem estética do corpo total da atriz, que traduzia a Mulher com acerto. Em um determinando momento do processo, quando nos deliciávamos em descompromisso criativo experimentando aleatoriamente propostas dos atores para o figurinos das personagens, me deparo com a concretude da Mulher: Jyesse, com sua particular beleza, descalça, com uma saia volumosa e patética, e nua no que se refere a todas as partes do corpo que o pano não cobria. A Mulher perfeita. Não como símbolo de perfeição, percebam que escrevi com maiúscula, pois a personagem se chama Mulher, logo, a personagem perfeita. Tergiverso para atiçar a sua curiosidade.

Você deve estar se perguntando, o que essa glosa significa? Qual a relação com o dizer desta postagem? Revelo: após o registro da imagem epifânica pelas minhas retinas, me deparei questionando a opção. Em trinta anos de teatro, nunca havia vivido a sensação de confrontar uma demanda orgânica da cena com o entorno com a qual ela vai dialogar. Falamos de censura, de conveniência, de cuidados, de enquadramento, de todas uma hermenêutica que jamais deveria habitar o diálogo de uma obra de arte em construção.

Eis a questão. O quanto o mercado, as curadorias, o espectador, o viés político   tem influenciado as opções do teatro de grupo na contemporaneidade? Quanto a conveniência influencia a cena? Tenho me deparado com uma frequência fenomenal com comentários referentes às motivações que determinaram o destino de encenações das mais diversas: ter uma pegada mais contemporânea; uma estética mais enxuta para facilitar a circulação; o problema da internacionalização é o idioma; preferimos não arriscar para não limitar; o espectador quer se divertir; melhor evitar polêmica; melhor provocar polêmica…

O que deve ser incorruptível em um dizer artístico? Até que ponto a concessão é uma arma ou uma farsa? Não caberia à arte a crueza da verdade necessária, independentemente do diálogo com o seu entorno? Não caberiam às vanguardas o não enquadramento? Fazemos teatro ou promovemos unanimidades? Provocamos ou pasteurizamos?

Mesmo depois de trinta anos tropegando nos trilhos tortos do teatro de grupo e seus azares, a experiência não me brinda com a serenidade típica e cadenciada da idade. Hoje, estou pouco confortável com a nova ordem que se desenha. Não me sinto em condições de arbitrar valor ao caminho mais acertado para decompor tudo o que está posto e provocar uma nova desordem. Insistir na ruptura? Investir no decote? Como se estrutura a cena cíclica do mundo? Como progride um universo; do caos ou da harmonia? Queremos aceitação ou queremos transgredir? Qual é o meu lugar na cena? Qual é o lugar do teatro de grupo?

Outro dia escrevi que decidi ser jovem depois de velho, e cheguei atrasado. Blefe? Continuo um velho empedernido? Você me vê transigindo com o que não me representa pelo valor atribuído aos vinténs da contemporaneidade? Você me enxerga enquadrando uma obra para ampliar a repercussão do seu dizer? Você me entende como sujeito de uma construção pré-moldada? Você reconhece o dilema ou acredita no meu jogo de cena? Não, não são perguntas retóricas. Me responda: como você me vê?